Espanha celebrou há dias o 40º. aniversário da sua constituição. O desenvolvimento social e económico do país neste período não oferece dúvidas sobre a eficácia desse instrumento para facilitar uma transição ordenada entre regimes políticos e criar um quadro institucional que, embora precise de ser atualizado, tem servido para acomodar as enormes mudanças ocorridas, em todos os domínios, durante esse período.

De forma análoga à situação de mudança entre regimes que a constituição espanhola facilitou, o mundo vive uma revolução tecnológica sem precedentes que, junto com os enormes benefícios que a transformação digital acrescenta às nossas vidas, comporta riscos de rutura de pilares básicos do contrato social vigente há 70 anos na Europa. Em termos económicos, estão-se a criar duas castas digitais: uma elite cognitiva que exprime o benefício dos avanços tecnológicos; e os párias digitais, que pagarão todos esses benefícios. Os distúrbios sociais em França acabam por ser um efeito indireto dessa disrupção.

Os estados líderes na transformação digital, os EUA e a China, estão a seguir caminhos aparentemente diferentes. Embora o tecno-liberalismo americano constitua um modelo de desenvolvimento muito diferente do autoritarismo chinês, ambos partilham o cesarismo dos seus líderes: carismáticos capitães de empresa no caso dos gigantes californianos da Internet; e mais obscuros, embora paulatinamente mais eficazes, dirigentes do partido comunista chinês com uma visão estratégica do potencial das novas tecnologias, sobretudo da inteligência artificial, para recuperar o seu domínio histórico do mundo.

Mas existe uma terceira via para a Europa conjugar, com base nos seus valores, as vantagens desta onda tecnológica e a mitigação dos seus efeitos fraturantes na sociedade: o constitucionalismo digital que permita um acesso democrático e bem regulado aos benefícios da Internet.

A nova carta de direitos digitais deveria promover uma transformação que reconhecesse à tecnologia o seu protagonismo, mas colocasse as pessoas no centro desse processo, atualizando os direitos fundamentais ao mesmo tempo que se renovam as instituições económicas, democráticas e sociais.  Esses novos direitos deveriam incluir, entre outros muitos, a identidade digital, a transparência dos algoritmos ou a igualdade de oportunidades económicas digitais.

A Europa está numa posição privilegiada para promover esta via por dois motivos fundamentais: é a única região do mundo que conta com um sistema de proteção da privacidade, o Regulamento Geral de Proteção de Dados; e as áreas mais expostas à transformação radical com um grande impacto social, como a saúde, a educação, o transporte ou a energia, estão fortemente reguladas. Embora se trate de um sistema imperfeito e quase sempre excessivamente burocrático, os reguladores europeus são os únicos no mundo com critério e com músculo suficiente para nos proteger do tsunami que aí vem.

A revolução tecnológica subjaz nos conflitos sociais e políticos que nos perturbam de forma crescente e pode transformar-se numa arma ideológica muito potente. Por isso, deve ser acomodada institucionalmente para proteger a Europa na batalha entre as superpotências pelo controlo do mundo.