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Criação de um registo de doentes “é particularmente importante nas doenças raras”

Especialistas em doenças raras defenderam esta segunda-feira, no webinar do Jornal Económico, que o sucesso do acompanhamento que é feito em Portugal a esses doentes exige um registo completo e partilhado entre os vários sistemas de saúde.
  • Cristina Bernardo
28 Fevereiro 2022, 19h00

O atual estado de acompanhamento e tratamento dos doentes com doenças raras em Portugal foi o tema central do webinar que o Jornal Económico dinamizou esta segunda-feira juntamente com a farmacêutica Sobi, 28 de fevereiro, data em que se assinala o Dia Mundial das Doenças Raras.

A conversa debruçou-se sob aquele que tem sido o acompanhamento prestado a estes doentes, e aos seus familiares, particularmente no período pandémico, e deixou considerações para o futuro destas patologias no panorama português, que os especialistas esperam que seja marcado por um maior aproveitamente dos avanços tecnológicos e digitais. Acima de tudo, urgem que o legislador e os responsáveis hospitalares trabalhem no sentido de criar um registo de doentes central e transversal eficaz, partilhado entre os diversos sistemas de saúde, que permita estudar e tratar as doenças raras sem constrangimentos.

O atual coordenador do Núcleo de Estudo de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, Luis Brito Avô, nota que no período de início da pandemia houve “uma grande adaptação dos serviços das unidades de saúde”. Naquele que foi o momento mais “agressivo” de combate à pandemia, o Assistente Hospitalar Graduado do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN) recorda que “dos oito sectores de Medicina Interna, seis foram atribuídos à Covid”.

No que diz respeito às doenças raras, Luis Brito Avô crê que o que foi mais prejudicado “foi o acesso às consultas e às sessões no hospital de dia, que são muito importantes porque é onde é administrada a terapêutica”.

“A maior parte dos medicamentos para estas doenças são chamados de ‘medicamentos órfãos’, e são de prestação e cedência hospitalar”, explica, ressalvando que apesar dos atrasos no acesso às terapêuticas foram “raras” as suspensões.

Luis Brito Avô elogia ainda a capacidade de resposta de todas as estruturas, “apesar de tudo o que se diz e escreve por aí” e olha para o futuro da ação médica com otimismo e com fé nos processos de digitalização e transformação tecnológica. “A telemedicina teve um incremento absolutamente extraordinário e tornou-se uma ferramenta útil e indispensável, que foi muito apreciada pelos doentes”, garante.

Além dessa, refere a importância que foi estendida à prescrição eletrónica e à criação de uma linha verde para o acesso à farmácia comunitária ou a entrega domiciliária do medicamento, “uma vez que estes medicamentos para as doenças raras são quase todos de despensa hospitalar”.

O especialista afirma ainda que caminhamos no sentido de normalizar e padronizar a hospitalização e as terapêuticas domiciliares, referindo a autorização por parte da Secretaria de Estado da Saúde do uso desta última no caso das doenças lisossomais. “Só existe um centro em Portugal que o faz, e é em Guimarães”, esclarece.

Se a adoção de algumas destas soluções teve “um impulso significativo com a pandemia de Covid”, nas palavras de Luís Brito Avô, do ponto de vista associativista ainda há um longo caminho a percorrer.

O presidente executivo de Empatia da RD-Portugal, Paulo Gonçalves, afirma que “a vontade é muita”, mas que não se reflete na prática, e aponta ao dedo à escassez de registos. “Se as pessoas estiverem numa determinada região, ou se se mudarem”, explica, é impossível sabê-lo. “E nós temos que o saber, e o Regulamento Geral da Proteção de Dados não pode ser desculpa: precisamos de saber quem somos, quantos somos, onde estamos e como podemos ser tratados”, defende.

Além das questões hospitalares, o responsável pela associação que reúne doentes raros e familiares lança críticas à inércia comunitária. “Vivemos numa sociedade cada vez mais individualista, mas as doenças raras vão no sentido oposto, no caminho da união em torno da família”, diz, esclarecendo que é preciso “olhar para a pessoa no seu todo, e não só para aquela doença, especialmente porque muitos dos tratamentos farmacológicos existentes não são específicos da doença”, mas que servem antes para “ajudar a que não haja uma evolução ou que essa evolução seja um pouco mais lenta”.

Já o presidente do Instituto da Saúde Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, António Vaz Carneiro, considera que a solução pode passar por desmistificar as doença raras e trabalhar no sentido de criar um registo, que considera “muito importante”.

“O problema das doenças raras é que são raras”, atira. “E um dos problemas mais graves que as doenças raras têm é o diagnóstico apropriado dessa doença”.

“Uma boa parte das pessoas pensa que as doenças raras são doenças de bebézinhos – é mentira”, explica realçando que essas mesmas pessoas “não sabem que a maior parte dos cancros são doenças raras”.

A doença rara define-se na Europa por uma prevalência de “5 casos em cada 20 mil habitantes”, segundo António Vaz Carneiro. Já nos Estados Unidos, para comparação, uma doença é considerada rara com “200 mil ou menos” casos, explica. “Há aqui um enorme gap: há doenças raras com três pessoas ou com 3.500″, aponta.

“Se eu quiser fazer um estudo sobre diabetes, arranjo num instante 10 mil doentes. Para conseguir fazer um estudo de doença rara a sério posso demorar cinco ou seis anos até ter uma amostra final de 15 doentes.”

Sobre o eventual caminho para uma solução integrada para estes doentes, o especialista enumera dois aspectos cruciais, dos quais todos os membros do painel concordam: a investigação e o registo.

Há que “participar nas redes europeias, que são excelentes”, defende, explicando ainda que “o registo de doentes é uma base de dados completa sobre aquela doença, que consegue captar as características dos doentes individuais mas faz ainda mais”.

António Vaz Carneiro refere que estes registos “seguem o doente no tempo”, estudando aspectos e variáveis pertinentes do ponto de vista da investigação como a incidência, o número de novos casos e complicações, que se podem evidenciar ao fim de “três, cinco, sete ou dez anos… Um ensaio clínico é uma coisa de seis meses”, adiante. “Os registos são muito importantes para as doenças prevalentes, mas são particularmente importantes nas doenças raras”, remata.

Já sobre a investigação clínica, António Vaz Carneiro considera que a mesma se tem desenvolvido muito nos últimos anos antes da pandemia e recorda que “aquilo que se verificava antes da pandemia era um interesse progressivo por estas doenças” e insiste que é produto do interesse da indústria farmacêutica. “A indústria farmacêutica resolveu apostar nas doenças raras e foi esse o ponto de viragem – não foi uma súbita consciencialização dos decisores, foi a indústria farmacêutica, que em vez de uma doença multiprevalente, como a diabetes ou a hipertensão, dedicou-se a olhar para estes doentes específicos”, explica ressalvando que nesse sentido “a investigação de boa qualidade também sofre”.

Também o administrador do CESADI – Centro de Saúde Digital, José Mendes Ribeiro, fez parte do painel reunido pelo Jornal Económico para debater as doenças raras e recordou o contacto próximo que teve, ao longo da sua vida profissional, com aquela que é muitas vezes referida como “talvez a mais portuguesa das doenças raras”, a paramilóidose.

“Eu trabalhei no Instituo Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge na altura em que foi feita a fusão com o Instituto de Genética, no Porto, e isso deu-nos a oportunidade de tentar resolver o problema do registo dos doentes, e de conseguir a partir desse registo procurar a inovação”, esclarece.

José Mendes Ribeiro sublinha ainda que “o registo de doentes é um tema de fundo que falta resolver no nosso sistema”, tanto público como privado, por ser “fundamental para a medicina do presente e do futuro”.

Para o administrador hospitalar, existe uma necessidade de valorizar “a informação da qual dispomos hoje de uma forma dispersa nos sistemas” e que há problemas que advêm desta “dificuldade de interoperabilidade entre as várias instituições”. Ainda assim, mostra-se confiante de que Portugal dispões de “todas as condições para poder usar essa informação e trabalhá-la”, atendendo que seja cumprida a proteção dos dados pessoais médicos, direito consagrado na Constituição.

As declarações foram feitas no webinar “Conversas Raras”, transmitido esta segunda-feira nas plataformas digitais do Jornal Económico, numa organização conjunta com a Sobi e que pode rever na íntegra aqui.

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