Com o país a ter de lidar há mais de dois anos com uma pandemia, é unânime para a sociedade portuguesa a importância do setor da Saúde, a par da coragem, resiliência e dedicação dos seus profissionais.

No entanto, a pressão exercida pela sobrecarga adicional imposta por um contexto pandémico muito desafiante, veio revelar problemas crónicos que se têm vindo a agravar pelo menor investimento no talento do setor, nomeadamente no que se refere à atração e retenção dos médicos. Contabilizam-se recordes de horas extraordinárias feitas pelos médicos neste período e a herança de uma pandemia que persiste na urgência de responder ao adiar de cirurgias, rastreios e diagnósticos que ficaram por fazer.

É evidente a falta de capital humano no setor. Assistimos hoje a serviços de urgência lotados e longos tempos de espera, a concursos para médicos com vagas por preencher, bem como a movimentos de grupos de profissionais que decidem abandonar o Serviço Nacional de Saúde, com visível desgaste e frustração. Menos noticiados e visíveis são os níveis de burnout elevados deste grupo profissional.

Somam-se os efeitos, vivem-se as consequências do sofrimento ético dos médicos e estamos perante profissionais que se sentem desmotivados, cansados, pressionados para fazer mais e melhor com menos. Subtrai-se o que falta: a valorização do trabalho dos médicos, das suas competências e um nível de responsabilidade tão elevado quanto o valor de uma vida.

Por outro lado, tendo presente a crescente competitividade do mercado de talento no setor da Saúde, entre o público e o privado, e também entre Portugal e o mercado de talento global que é cada vez mais apelativo para as novas gerações com uma oferta de condições salariais bastantes mais atrativas, impõe-se a necessidade de transformar este paradigma. Importa garantir uma estratégia de atração e retenção que tenha o impacto positivo desejado, que seja efetiva e sustentável.

É neste contexto que refletir sobre a missão e o propósito dos médicos ganha hoje uma nova centralidade. Aspetos como o acesso a formação e participação em projetos diferenciados, o reconhecimento e a meritocracia, a evolução na carreira ou a remuneração e benefícios, são cada vez mais os aspetos determinantes para garantir não só a retenção, mas também um sentimento de realização destes profissionais.

Fazendo as contas, o balanço do que têm e não têm os médicos no modelo de funcionamento atual é um dar e receber desequilibrado, em que os cidadãos tendem a perder se esta realidade não for transformada.

Arrisco-me a dizer que se é este o diagnóstico que faço à realidade vivida pelos médicos, arrisco-me também a defender que é tempo de transformar e iniciar um caminho diferente, que nos pareça mais interessente de explorar. É o tempo de assumir um novo caminho de transformação ao invés de ficarmos quietos à espera de ver para onde o que temos hoje nos leva.

O que transformar para atrair e valorizar o papel do médico?

  •  Apostar numa proposta de valor para o papel do médico que seja competitiva e diferenciadora.
  • Consolidar uma perspetiva da carreira médica alinhada com os desafios atuais e futuros, que seja bem definida e assente na meritocracia.
  • Fazer evoluir as formas de trabalhar, fomentando a agilidade e dando maior autonomia ao nível da gestão.
  • Focar no propósito e na valorização do trabalho em equipa, na partilha contínua de experiências e conhecimento entre diferentes gerações de profissionais, e entre equipas multidisciplinares.
  • Proporcionar mais tempo para investigação e para projetos, que deverão estar devidamente enquadrados no âmbito das tarefas do médico.

Contas feitas, fica patente a urgência de transformar a forma como é gerido o talento no setor. E, acima de tudo, é mesmo urgente cuidar de quem cuida.