“Por vezes somos apenas o dano colateral numa guerra de alguém contra si próprio”, Lauren Eden

Os primeiros meses do ano trouxeram ao de cima dados que são positivos relativamente à esperança de que as restrições sanitárias, decorrentes da pandemia, farão em breve parte passado, e que um ciclo de transição para uma nova normalidade da vida em sociedade está em curso. Contudo, a meio do primeiro trimestre, começam a ser visíveis consequências económicas, geopolíticas e sociais no mundo, e nem todas apontam no sentido de uma transição suave ou indolor.

Com o mundo desenvolvido atento ao potencial risco de conflito militar entre Rússia e Ucrânia, com o espectro do fantasma de uma nova cortina de ferro a condicionar o sentimento europeu, importa também destacar outros riscos que poderão agravar tensões entre blocos económicos e as suas populações, e que estão diretamente relacionados com a desigualdade que existe no caminho de saída da crise sanitária em que o mundo mergulhou nos últimos dois anos.

A desigualdade de acesso às vacinas criou desigualdades estruturais na recuperação pós-Covid…

O mundo económico conseguiu em 2021 ultrapassar o espectro de uma recessão mundial prolongada, e as principais economias do mundo – Estados Unidos, China e União Europeia – conseguiram voltar ou ficar perto dos níveis de atividade do pré-pandemia. Em muitos destes países, existem já planos de transformação das mesmas que permitirão maior digitalização das economias, criação de novos postos de trabalho e apoio na coesão social, preparando o mundo desenvolvido para o ciclo pós-pandemia, que deverá ser mais automatizado, mais preocupado com a sustentabilidade do planeta e já com uma nova forma de encarar o mercado de trabalho num mundo mais conectado do que nunca.

No entanto, este admirável novo ciclo não será para todos, pelo menos não ao mesmo ritmo. Na verdade, nos países mais pobres, o acesso ao programa de vacinação está longe de ser uma realidade. De acordo com o relatório produzido em janeiro pelo World Economic Forum – The Global Risks Report 2022 –, nos 52 países mais pobres do mundo, onde vive mais de 20% da população mundial, apenas 6% da população terá recebido uma dose de vacina.

Adicionalmente, a capacidade de recuperação das economias é muito mais lenta, e em 2024, os países em desenvolvimento e emergentes (excluindo a China) estarão em média cerca de 5,5% abaixo dos níveis de atividade económica do pré-pandemia registados em 2019. Isto, ao mesmo tempo que as economias do mundo desenvolvido deverão estar, em média, cerca de 1% acima do valor pré-Covid.

… tal como cria dificuldades e tensões económicas adicionais que podem tornar-se estruturais

Esta transição desigual no pós-pandemia pode originar problemas entre populações de um mesmo país, e entre países ou blocos de interesses económicos e geopolíticos distintos, agravando tensões pelo acesso a tecnologia ou recursos, e torna mais complexa a coordenação internacional de desafios estruturantes do planeta, como o combate às alterações climáticas, e a transição para uma era de crescimento económico digital que permita não apenas a melhoria das condições de vida das populações, mas sobretudo a coesão social da sociedade.

Ora, os riscos permanecem relevantes. A economia mundial, depois de uma recuperação forte em 2021 (+5,9% de acordo com as projeções de outubro do FMI), deverá registar um crescimento moderado até 2024 , onde, de acordo com o mesmo relatório do FMI, o crescimento mundial deverá ser 2,3% menor do que seria caso não tivesse havido pandemia.

As consequências mais imediatas do pós-pandemia já começam a fazer-se sentir. Os preços das matérias-primas subiram cerca de 30% desde o final de 2020 e deverão permanecer assim durante mais algum tempo, sobretudo enquanto de mantiverem elevadas as tensões entre a Europa e a Rússia, ao mesmo tempo que as falhas do lado da oferta na produção mundial ou as falta de energia em economias de relevo, como a China, aumentam os desafios de transição de combustíveis fósseis para energia limpa e, principalmente, tornam a inflação menos transitória e mais capaz de afetar o crescimento económico mundial.

A manutenção da inflação em níveis significativos pode gerar juros mais altos por parte dos bancos centrais e afetar não apenas o consumo e rendimento das famílias, como agravar a capacidade de resposta dos governos, que se encontram com níveis de endividamento público muito elevados em resultado das respostas necessárias à pandemia – o aumento da dívida mundial terá aumentado em 13 pontos percentuais, para 97% do Produto Interno Bruto agregado para a economia mundial.

A combinação de um ciclo de subida de taxas de juro com níveis elevados de dívida é potencialmente negativo para lidar com desafios de transição energética e, ao mesmo tempo, também cria dificuldades às empresas – sobretudo às de menor dimensão – para lidar com a recuperação da economia quando ainda estão a digerir o lastro provocado pela Covid-19.

Mais protecionismo e menor coesão entre povos pode gerar riscos geopolíticos e crises humanitárias

O agravamento das condições de desigualdade na transição de saída da pandemia pode gerar duas trajetórias principais algo divergentes no mundo. Nos países mais desenvolvidos, uma distribuição mais eficaz das vacinas, um programa de transformação digital da economia mais bem-sucedido e novas oportunidades de crescimento económico trazem oportunidades que podem criar uma perspetiva societária favorável no curto prazo (no sentido de rapidamente posicionar esses países no ponto do pré-pandemia), mas também no médio prazo, porque poderão implementar reformas que permitam tornar as economias mais resilientes para o futuro.

No entanto, muitos outros países irão ficar para trás, condicionados por baixa taxa de vacinação, contínua pressão em termos de resposta sanitária, menor acesso a tecnologia ou incapacidade do Estado de investir na transição digital, sobre-endividamento, podem gerar mercados de emprego estagnados e problemas na sociedade.

Estes caminhos divergentes deverão tornar complexa a gestão de interesses globais comuns, como é o caso da transição climática. Isto acontece desde logo porque a divergência na recuperação e no acesso a meios para as necessárias transições de tecnologia deverão levar ao aumento do nível de pobreza à escala mundial, contribuindo assim para aumentar o ressentimento antissistema no seio das sociedades, que por sua vez irá alimentar maiores pressões em prol do protecionismo e defesa de interesses nacionalistas contra a globalização.

Acresce que muitas das economias que utilizam combustíveis fósseis poderão ter efeitos geopolíticos dissuasores na transição energética e digital. Esta é afinal uma transição que em muitos países terá um impacte muito elevado no que diz respeito ao mercado de emprego, colocando potencialmente milhões de trabalhadores no desemprego, um efeito negativo extremamente complexo de gerir.

Crises humanitárias, como aumento da pobreza extrema (o relatório do World Economic Forum de janeiro estima que cerca de 51 milhões de pessoas nos países do G20 passem a viver em condições de extrema pobreza depois da pandemia), ou o aumento significativo da imigração proveniente de países pobres, incapazes de preparar as economias para uma transição criadora de valor económico, e como tal de manter rendimentos serão difíceis de evitar.

‘Bottoms up’: lidar de forma coordenada com danos colaterais, para que não se tornem estruturais

A comunidade internacional conseguiu agir num passado recente, e de forma coordenada, no sentido de evitar o desastre sanitário. A resposta, que funcionou bem, funcionou melhor onde o mundo é mais organizado e desenvolvido, e significativamente menos bem onde há mais fragilidades.

Importa agora refletir sobre os riscos que existem na estratégia de saída da pandemia, que passará muito pelo apoio a uma transformação económica, que permitirá manter e reforçar a resiliência global da sociedade.

As desigualdades que existem neste caminho podem ser superadas ou mitigadas se houver uma forte coordenação entre estruturas internacionais, governos e entidades privadas que operam de forma relevante nos países que necessitam de maior suporte para ultrapassar rapidamente o ciclo de pandemia (acelerando o acesso a vacinas e processos de distribuição da mesma). E, sobretudo, para garantir que também terão acesso célere ao ciclo de transformação digital – criando e incentivando mecanismos para a transição digital, necessária para atingir objetivos de carbono zero.

Os custos económicos e societários associados a uma desigualdade estrutural e divergente na saída desta crise serão elevados e poderão condicionar, a médio prazo, os próprios países mais desenvolvidos nesta equação mundial. Um processo no qual, no fim, todos seremos um dano colateral.