“Um lobo não escolhe ser um lobo. É a fome que o leva a sair da floresta. Se dermos um osso a um lobo, ele transforma-se num cão e deixa de morder” (Otto B. Kraus).

Parto do livro “O Bloco das Crianças” (out. 2019, Editorial Presença) não só para assinalar a efeméride – 75 anos do fecho de Auschwitz –, bem como transportá-lo para cada hoje arrastado e arrestado: os campos concentrados, oficiais e secretos, de refugiados aumentam… Mas noutros moldes, com os 71 milhões que saem dum mundo hostil para conhecerem a hostilidade de outro mundo, que julgariam e desejariam diferente. Haja dó e piedade!

E em todas essas vítimas que a xenofobia, o ultranacionalismo, a indiferença, o híper-populismo (entre outros abismos) vão constituindo, destaco e dedico esta crónica – publicada em Dia do Pai – a tantos pais que perderam a sua vida protegendo os seus. Esses heróis guerreiros que se martirizaram, pela vida dos familiares. Ou que viram e sentiram os seus filhos morrer, nos braços, nesse êxodo inglório de fuga. Por todos eles que – em busca dum novo sol – se refugiam nesta luta titânica de conseguir uma vida melhor, longe de guerras e de sanguentas terras. Longe de violências e outras tantas carências. Longe de opressões e muitas mais sanções.

Vivemos num ambiente enclausurado de Deserto e desertos: na religião, a par da Quaresma; na Saúde pública, com urgentes quarentenas; na vida geral, face à fragilidade, desolação e aridez constantes que o ser humano enfrenta e nem sempre aguenta. E, claro está, no mundo global que – na crise dos refugiados – se torna fatal. Imoral!

Saramago descreveu-os bem: “os sobreviventes dos novos naufrágios, os que puseram pé em terra e não foram expulsos, terão à sua espera o eterno calvário da exploração, da intolerância, do racismo, do ódio à pele, da suspeita, do rebaixamento moral”. João Paulo II também, falando sobre a assistência aos refugiados e a proteção das minorias: “não são mais do que aplicações coerentes dos princípios da cidadania mundial”.

Esta imagem que escolhi do ‘deserto’ – como travessia desde os centros fatídicos do passado aos do presente – adequa-se ao (contra) cenário de toda e qualquer migração involuntária. Simboliza a indiferenciação inicial e a extensão estéril, nas quais deve procurar-se a realidade. Até para tentar contrariar parte deste “mundo de insanidade” (O. Kraus).

Otto B. Kraus, um judeu checo sobrevivente desses lugares exterminadores, escreveu este romance autobiográfico: a História feita de histórias. Numa sensação “déjà-vu”, cujas palavras e expressões escritas detêm a mesma carga destrutiva – olhando-se à miserável e piorada realidade corrente de todos os deslocados. Tais como: açoites, pesadelos, escuridão, fome, morte e crueldade…

“Atravessar a vedação eletrificada”; “quem for apanhado fora do bloco leva um tiro”; “o medo era como uma doença contagiosa (…) faz com que as coisas más fiquem ainda piores”; “quanto tempo vamos viver?”… São todos ermos e termos horripilantes, de que não vemos o seu termo nesta fumaça migratória e que nos intoxica a via respiratória.

Ao folhear “O Bloco das Crianças” vejo, assim, o bloco moderno de sofrimento dos Refugiados, com tudo – sem tento – o que tem eclodido, sucessivamente, na Síria, nas fronteiras ítalo-greco-turcas e demais regiões lesadas.

Kraus, que foi depois um imigrante em Israel, descreveu aquilo que, certamente, os migrantes exprimem: “éramos como uma pedra atirada para o vazio do universo, fora do tempo, condenados, esquecidos e completamente sozinhos”. Ele próprio referiu estar a “reaprender a ser humano”, com tais barbáries e cicatrizes infligidas. E quem as comete – ao maltratar, rejeitar e expulsar os refugiados, mesmo crianças – por que não se retratar? Não precisa reaprender a humanizar e a solidarizar? Terríveis e tristes cenas e sinas, estas, de outrora e de agora, agigantando o “escudo de gelo” planetário, “debaixo do glaciar da insensibilidade” que nos cerca e que gera perca!…

Ora, neste longo deserto de secura e travessura que viola os Direitos dos Refugiados, a passagem pela luz da esperança graciosa seja ressarcida. Na perspetiva dum novo êxodo, o drama desértico que não só treno de provação, negação e solidão, avelar-se-á em terreno de libertação, revelação e superação. Seja completamente desertificado todo e qualquer holocausto incauto!

Que o repto dos judeus refugiados, encarcerados de Auschwitz e de outros ‘desertos’, seja alento e contento para os refugiados sobreviventes deste mundo: “fechávamos os olhos e sonhávamos com a liberdade do oceano, com os barcos que partiam para locais exóticos, com as ilhas que cheiravam a especiarias e as costas adocicadas pelas flores dos limoeiros. (…) Dentro da escravatura do campo, os prisioneiros tinham uma liberdade que ninguém lhes conseguiria tirar: a liberdade de sonhar” (O. Kraus). Sonhemos, portanto, e alcancemos!