Numa altura em que parece haver um consenso sobre a importância da redução do défice e da dívida pública, em que até à esquerda se fazem generalizações erradas – “…só um tonto é que acha que défices são bons” (Daniel Oliveira aqui, minuto 40) –, quero defender, dentro do que a minha capacidade e estas escassas linhas permitem, a ideia de que défices públicos são, de modo geral, bons, desejáveis e necessários. Da mesma forma que afirmar que fazer exercício é saudável não significa recomendar que se façam três maratonas por dia, eu não quero com isto dizer que quanto maior for o défice e a dívida melhor e que não existem limites. O que pretendo argumentar não se aplica diretamente ao caso português atual, aplica-se a um país com moeda própria, sendo que no caso da Zona Euro seria necessário que o BCE financiasse, direta ou indiretamente, de forma decisiva, os governos de cada país, algo que vejo como politicamente (e “apenas” politicamente) impossível. Ou seja, o que defendo é que défices públicos são necessários, especialmente na conjuntura atual, mas as regras europeias não o permitem de forma suficiente e essa diabolização de défices e da dívida pública que está firmada nos tratados europeus é o principal responsável pela severidade e extensão da crise em que nos encontramos. É este o ponto de vista da maioria dos economistas pós-keynesianos e especialmente dos economistas da chamada Teoria Monetária Moderna (MMT) – sim, o nome soa pessimamente.

Creio que todos (ou quase todos) concordamos que seria positivo que no futuro o governo necessitasse de gastar menos dinheiro em subsídios de desemprego e apoios sociais. Seria sinal de que haveria menos gente a precisar destes apoios. Quer isto dizer que defendemos uma redução dessas transferências ou que estes não são bons, desejáveis e necessários? Não. O que pretendemos é uma melhoria da situação económica do país e das pessoas, que torne tais apoios cada vez mais desnecessários. O objectivo é a criação de emprego e o crescimento económico e a redução de transferências sociais é uma consequência disso e não um objectivo por si só.

Com o défice e a dívida pública a ideia é semelhante. O ideal é que haja crescimento económico, que as empresas invistam, que o desemprego diminua e, como consequência disso, o défice e a dívida também diminuam. Pode-se até chegar ao ponto de se justificarem superavits, caso a economia esteja em pleno emprego e com sinais de inflação excessiva. A ideia de que os défices (ou a sua redução) não devem ser vistos como um objetivo a atingir e que as opções orçamentais devem ser julgadas pelo seu efeito na economia foi desenvolvida por Abba Lerner e é conhecida pelo nome de Finanças Funcionais. Um exemplo bem recente da aplicação destes princípios é o orçamento canadiano, revelado no mês passado, na apresentação do qual o ministro das Finanças, Bill Morneau, deu a entender que não está nos seus planos futuros um orçamento “equilibrado”.

Como tentei descrever antes, o bom funcionamento de uma economia monetária depende dum fluxo suficiente de fundos em circulação, que tem de aumentar acompanhando o crescimento económico, e que é “alimentado” por nova dívida dos diferentes agentes económicos (os referidos défices no caso do governo) e enfraquecido quando a dívida é liquidada ou quando poupamos. Em tempos de optimismo e crescimento económico, as empresas e as famílias assumem o papel de alimentar grande parte deste fluxo podendo o governo desempenhar um papel secundário em termos de dimensão. Porém, em períodos de crise tal não se verifica, e cabe ao governo preencher esta lacuna, uma vez que, estando no topo da hierarquia do sistema monetário do país, não enfrenta os mesmos problemas de insolvência do sector privado. É importante referir que isto não tem nada a ver com o peso do estado na economia. É possível ter um Estado mínimo, cujo governo, em momentos de crise, aumente as suas transferências para os restantes setores, preenchendo a referida lacuna, sem que isto signifique um aumento dos serviços prestados pelo Estado.

É esta possibilidade de os governos intervirem em períodos de fraco crescimento económico que está ausente da Zona Euro – construída com o pressuposto de que a política monetária seria suficiente para ultrapassar qualquer crise –, estando esta dependente quase exclusivamente do setor privado, já completamente sobreendividado, para alimentar o referido fluxo de fundos, o que é manifestamente insuficiente. O plano de investimento Juncker é o reconhecimento dessa insuficiência, um muito pequeno passo na direção certa, mas que mesmo no seu desenho inicial já se afigurava muito aquém do necessário.

Um ponto importante, e que por vezes parece esquecido nestes debates, é que dívida pública é um ativo do sector privado; défices públicos significam mais poupanças para o setor privado. Quando falamos em reduzir a dívida pública estamos a falar em piorar a situação financeira do setor privado e quando isso é feito de forma deliberada e continuada os efeitos são nefastos para a economia. Nos Estados Unidos houve sete períodos de superavits públicos e de forte redução da dívida pública. Aos seis primeiros seguiram-se depressões, ao sétimo – o de Bill Clinton – seguiu-se uma recessão, um período de euforia especulativa e a crise que todos conhecemos.

Tudo isto não significa que baste aumentar a despesa pública ou reduzir os impostos e que tudo se resolve. Para obter bens e serviços produzidos no exterior, um país pequeno e pobre dependerá sempre, mais tarde ou mais cedo, do que conseguir produzir e vender aos seus parceiros comerciais. O ponto é que certamente conseguirá produzir mais com 2% de desemprego do que com 10% e o governo deve contribuir para que assim seja. As limitações são reais e não financeiras.

O argumento não implica que não tenha de haver rigor na gestão das finanças públicas e que não haja limites na hora de aumentar a despesa ou de reduzir os impostos. Significa, apenas, que estes constrangimentos não são financeiros, mas dependem, sim, das circunstâncias e dos efeitos que estas opções terão na economia. Um país com um saldo externo significativamente positivo, pleno emprego e com sinais de inflação não deve apresentar défices públicos, por mais baixo que seja o seu nível de endividamento. Por outro lado, um país, ou uma união monetária, com níveis de desemprego inaceitáveis, um setor privado sobreendividado e com níveis elevados de dívida pública é urgente que o faça.