O novo paradigma da transformação digital apresentou-se nesta década como transversal a todos os setores de atividade, com avanços significativos nalgumas áreas, nomeadamente naquelas com uma forte componente de serviço. Estes avanços foram visíveis em vários setores, desde o retalho ao entretenimento, passando pelos serviços financeiros e utilities.

A facilidade de pesquisa, comparação de alternativas, avaliação de preços, escolha, aquisição, entrega, devolução e até feedback facilitaram sem dúvida o processo de tomada de decisão do consumidor e tornaram a sua jornada de consumo muito mais suave, conveniente e agradável. A assunção destas vantagens parece facilmente reconhecível para as empresas e, no imediato, também para os consumidores.

Porém, nem todos os setores de atividade parecem ter idênticas condições de beneficiar da automação de processos, como por exemplo o retalho, que conheceu por altura da pandemia uma evolução sem precedentes. A saúde, um dos setores mais afetados com a crise pandémica, parece, à partida, ter mais dificuldade em adotar tecnologias que limitam o contacto, no mesmo espaço físico, com o prestador de serviços.

Afinal, como pode um prestador adotar tecnologias que, em último caso, limitam a sua interação com o paciente, passando esta a ser mediada por um computador e abdicando do contato face-a-face que sempre caraterizou este tipo de serviços?

Como pode o setor da saúde beneficiar de tecnologias de proximidade digital, quando a alternativa é aquela em que prestador e paciente se encontravam na mesma sala? Como pode um diagnóstico ou tratamento ser prestado, quando as partes se encontram fisicamente separadas? Será esta efetivamente uma opção viável para fazer face à escassez de recursos médicos, à falta de capacidade instalada, à dificuldade de acesso aos convencionais locais de prestação?

Estas não são questões fáceis de aceitar para um paciente, nem o são, tão pouco, fáceis de aplicar por um prestador. Também não são questões que se colocam apenas no contexto da pandemia, pois o contexto da digitalização não tem retorno. Mas parecem fazer parte do novo modelo de interação em saúde, nalguns casos, pelo menos.

E a estas questões, outras se seguem, ainda que não mais fáceis de responder. Por exemplo: haverá especialidades médicas mais propícias para a aceitação desta mediação, como por exemplo, a psiquiatria ou a pediatria? Tratamentos mais disponíveis para o seu uso, como a fisioterapia ou os testes psicológicos? Haverá porventura uma fase da jornada do paciente mais disponível para acolher a mudança de paradigma, como por exemplo o diagnóstico ou a prescrição?

Certamente nenhuma especialidade ou tratamento quererá ser pioneiro nesta questão, sob pena de ser visto como menos importante que os demais. Mas é imperativo começar a pensar de que forma é que estes mecanismos podem ser usados de modo a maximizar o valor para o cliente, face ao custo da sua utilização.

Adicionalmente há que pensar que, dado o volume de dados disponível com este advento do digital, é cada vez mais praticável definir padrões de comportamento e até antecipar condições de saúde. Por isso, é igualmente importante pensar de que forma é que se podem os profissionais de saúde preparar, para além da especificidade das competências que já detêm, para prestar um outro tipo de serviço, que pode, nalgumas condições, ser mediado por um computador ou objeto de introdução de mecanismos de inteligência artificial.

Resumindo, como é que esta lógica de serviço de proximidade que sempre pautou o trabalho dos médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde pode ser implementada sem se perder o que de facto carateriza um serviço de saúde? E de que forma é que a mediação de equipamentos eletrónicos se poderá desligar da imagem de solução de recurso, a que os pacientes a associaram aquando da pandemia?

E, finalmente, como é que o volume de dados agora disponível pode ser, para além de armazenado, e tratado, colocado ao serviço do paciente, sem invasão da sua esfera pessoal, preservando as suas preferências de informação e escolha de tratamento; e, sobretudo, sem que estes caiam erradamente nas mãos de entidades alheias ao processo e que delas podem fazer um uso errado? Deverão as entidades reguladoras limitar a recolha, posse e uso destas informações?

Como balancear os potenciais ganhos da automação da informação e suas infinitas possibilidades de segmentação/customização, com os riscos para a saúde e bem-estar dos pacientes, para o trabalho de prestadores da área da saúde, para as empresas do setor, e, em última análise, para a sociedade como um todo? Estes são os grandes desafios que o setor da saúde enfrenta.

Ignorar a digitalização é perder o comboio da vanguarda tecnológica. Mas apanhá-lo em movimento passa por ser capaz de selecionar prioridades e por pôr em marcha um plano que precisa de atualização regular e permanente. Para além dos conhecimentos de ciências computacionais, sistemas informáticos e análise de dados, a gestão da saúde precisará cada vez mais de conhecimentos de marketing, de comportamento organizacional, de finanças, economia, psicologia e sociologia.