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Desordenamento Genético

Chegados de um país exausto, “agrologicamente pobre e fitologicamente delapidado” (ensina a História), sedentos de terra para arrotear e de pau para toda a obra, fizemos da floresta autóctone o que tinha de ser feito: consumimo-la.
27 Outubro 2017, 08h15

A destruição causada pelos incêndios que devastaram este verão o território continental, e no verão passado a Madeira, não se resolve pedindo a pena de morte para os incendiários. Sejamos complacentes: a acção predatória destes criminosos só se transforma em tragédia se encontrar pela frente um território desordenado. O melhor remédio para o mal continua a ser, portanto, o ordenamento do território, do qual muito se fala sem ninguém saber ao certo o que é.

O que é bom que se saiba é que o problema do ordenamento vem de longe. E, quando digo de longe, não me estou a referir aos últimos cinquenta anos, nem ao recuo da agricultura e ao abandono dos campos – duas causas próximas da tragédia. Não. Este longe refere-se a tempos bem mais recuados, aos tempos em que começamos a delapidar o primitivo coberto vegetal do país: os soutos atlânticos e os bosques mediterrânicos. A Madeira entrará nesta história (de Portugal) um pouco mais tarde. Mas entra logo a arder – mais de sete anos a arder, reza a lenda.

Ao longo da Idade Média, o arroteamento intensivo dos campos e a sobreutilização da madeira, que para tudo servia, deu origem a profundos desequilíbrios no território. A iniciativa de plantar o pinhal de Leiria – que este verão ardeu quase todo – terá cabido a D. Dinis. Tratava-se de reflorestar o país, deter a desertificação do interior e alimentar com uma árvore de crescimento rápido o consumo imparável de madeira. O certo é que nem o pinheiro bravo chegou para as encomendas. Entrados na época dos Descobrimentos, foi necessário importar da Flandres o tabuado e os mastros das caravelas. E com elas chegamos à ilha da Madeira, “que do muito arvoredo assim se chama”…

O destino que demos a esse “muito arvoredo” todos o conhecemos. Chegados de um país exausto, “agrologicamente pobre e fitologicamente delapidado” (ensina a História), sedentos de terra para arrotear e de pau para toda a obra, fizemos da floresta autóctone o que tinha de ser feito: consumimo-la. Uma pequena parte foi para tecto da Sé – ainda bem!; outra converteu-se em navios ou em cinza; e outra, como que por milagre, sobreviveu no coração recôndito da ilha e é hoje considerada a sua maior riqueza: a floresta laurissiva.

Graças a Deus, e ao Decreto Regional nº 14/82/M que criou o Parque Natural da Madeira – uma medida de ordenamento do território, sublinhe-se –, esta floresta vai subsistindo. Ainda não se tornou pasto das chamas nem do imobiliário. Quanto ao resto do território insular, o que lhe aconteceu no verão de 2016 foi o mesmo que aconteceu no verão de 2017 no Portugal Continental: ardeu. Em suma: incêndios e (des)ordenamento do território não são problemas novos, nem é de admirar que nos afectem mais a nós que a outros, ao fim e ao cabo, como disse o investigador Sobrinho Simões, somos “um povo com uma mistura genética única”.

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