Estão em vigor desde 26 de Março último as medidas excepcionais de proteção dos créditos das famílias, empresas e outras instituições adoptadas pelo Governo português, que instituem uma moratória legal aplicável a operações de crédito concedidas por bancos e outras instituições financeiras. Sinteticamente, permitem, sobretudo, às famílias e às empresas suspender os pagamentos de capital e juros dos seus empréstimos até 30 de Setembro de 2020.

Apesar das críticas dos primeiros dias ao mecanismo de capitalização de juros que o regime prevê – que essencialmente determina que os juros não pagos durante o período de vigência da moratória sejam adicionados ao capital, aumentando assim o montante total em dívida – a moratória legal (ou do Estado) parece constituir uma medida de efectivo apoio às famílias e empresas no momento particularmente complexo que atravessamos. Parece também em linha com os regimes adoptados antes em outros países europeus e que por cá mereceram elogios generalizados.

Sem prejuízo, alguns aspectos parecem merecedores de reflexão e alguns, eventualmente, de clarificação legislativa.

Operações abrangidas. O regime prevê serem elegíveis para a moratória do Estado, as operações de crédito concedidas por bancos e outras instituições financeiras a operar em Portugal, contendo um elenco muito reduzido de operações excluídas (como o crédito para compra de acções, por exemplo).

Seria conveniente concretizar que operações qualificam como “operações de crédito” para efeitos da aplicação da moratória. Estas incluirão, naturalmente, operações de crédito em sentido técnico (mútuos, aberturas de crédito, contratos de conta-corrente, etc.) mas, também, aquelas operações que, não sendo tecnicamente “de crédito”, são análogas, como a locação financeira, aluguer de longa duração, o factoring e o confirming.

Já quanto aos instrumentos de dívida emitidos por sociedades (obrigações ou papel comercial), quando detidos por bancos ou outras das instituições financeiras em questão, haverá argumentos contra e a favor da sua inclusão no leque das obrigações abrangidas. A clarificação deste ponto parece-me de particular importância dada a relevância destes instrumentos no financiamento a várias empresas.

Ainda quanto às operações abrangidas, mas já de pormenor: seria também conveniente explicitar (sendo este o caso) que a moratória é aplicável apenas às operações em execução à data da entrada em vigor do decreto-lei que a institui, e não às que venham a ser contratadas na vigência deste regime.

Pessoas singulares elegíveis. O regime possibilita o acesso à moratória a pessoas singulares que cumpram um dos requisitos elencados do decreto-lei relativamente ao seu crédito para habitação própria permanente. Pode (e deve) questionar-se se o leque das operações abrangidas deveria ser estendido, por exemplo, a outro crédito hipotecário ou ao crédito ao consumo.

Sem prejuízo, a norma é clara nesse aspecto. Já quanto aos requisitos de elegibilidade da pessoa singular (“…estejam em situação de isolamento profilático ou de doença ou prestem assistência a filhos ou netos, (…), ou que tenham sido colocados em redução do período normal de trabalho ou em suspensão do contrato de trabalho, em virtude de crise empresarial, em situação de desemprego (…), bem como os trabalhadores elegíveis para o apoio extraordinário à redução da atividade económica de trabalhador independente (…) e os trabalhadores de entidades cujo estabelecimento ou atividade tenha sido objeto de encerramento determinado durante o período de estado de emergência (…)” parecem-me, desde logo, formulados com um grau de tecnicidade que dificulta a sua compreensão pelos seus destinatários, que, caso, somos, potencialmente, todos nós.

Quanto aos critérios em si, compreende-se o esforço de abstração da norma no sentido de, por imperativos regulatórios, não fazer depender o acesso à moratória da solvabilidade do devedor. Sem prejuízo, parecem-me passíveis de poder gerar situações de injustiça relativa, permitindo a uns e não a outros, com conjuntura social muito idêntica, o acesso à moratória.

Pense-se, por exemplo, no trabalhador independente que vê o seu rendimento reduzido, sem que a sua actividade se encontre parada, que se vê impossibilitado de aceder ao regime, por comparação com o trabalhador em regime de lay-off ou em isolamento profilático, por exemplo.

Em todo o caso, sendo a perda de rendimento aparentemente um critério subjacente aos requisitos em questão, não é de excluir que estes possam precisar de ser revistos em função das novas orientações da EBA (European Banking Authority) de 2 de Junho referentes a moratórias de pagamento aplicadas no contexto da crise Covid-19.

Capitalização de juros. A moratória prevê, de facto, que os juros que seriam devidos durante o período em que a moratória se encontrar em vigor sejam capitalizados e assim adicionados ao capital em dívida. Tal representa, objectivamente, um custo acrescido que o mutuário não teria caso não acedesse à moratória. Permite, no entanto, que a operação mantenha a rendibilidade contratada. Tendo em conta as orientações da EBA a esse respeito, não será surpreendente que a solução seja mantida, apesar das críticas.

Novos financiamentos. O regime prevê expressamente que a moratória não dá origem ao incumprimento contratual nem possibilita o vencimento antecipado das obrigações contratuais. Seria, em meu entender, conveniente que previsse igualmente que o acesso à moratória não pode, por si só, ser critério de recusa de concessão de novo crédito. Caso contrário, as famílias e as empresas ficarão na ingrata situação de ter de escolher entre uma redução do serviço da dívida e o acesso a liquidez.

Impacto indirecto. Já não quanto ao regime em si, mas quanto aos seus eventuais efeitos colaterais, será de grande importância a monitorização do impacto da moratória em operações que tenham como activo subjacente operações de crédito que venham a ser sujeitas à moratória, em particular operações de titularização de créditos, obrigações hipotecárias, credit default swaps, e mesmo operações de cedência de liquidez junto do BCE.

Apesar de o regime prever expressamente que a moratória não poderá originar o incumprimento ou vencimento antecipado do contrato de crédito, não é de excluir que o mero não pagamento das obrigações que se venceriam possa gerar consequências em operações conexas, sobretudo aquelas que tenham subjacentes contratos de crédito que beneficiam da moratória.

Uma nota final para a resposta da banca à moratória do Estado: não só não foi (pelo menos publicamente) contestada, como a generalidade da banca nacional implementou moratórias complementares, ora estendendo a outros créditos, ora a outros beneficiários, a totalidade ou parte das medidas previstas. Parece, objectivamente, um bom sinal, num momento em que a banca é chamada à linha da frente do combate aos efeitos económicos da crise sanitária.