Se há um tema ao qual os grupos parlamentares insistem em não dar descanso, o direito a desligar do trabalho é certamente um deles.

Numa iniciativa legislativa recentemente promovida pelo grupo parlamentar do Partido Socialista (batizada de “Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital”, ou, de forma menos pomposa, Projeto de Lei n.º 1217/XIII), este grupo, entre diversas outras propostas centradas no que consideram ser os direitos fundamentais na era digital, vem relançar o tema do direito a desligar do trabalho.

Apesar das vozes que se fizeram ouvir contra a necessidade de positivar esta matéria, por considerarem não só que a legislação laboral vigente já delimita o tempo de trabalho e prevê cominações para a sua violação, bem como pelo facto de entenderem que a mesma deve apenas ser deixada à fortuna da contratação coletiva, certo é que o referido grupo parlamentar, impulsionado pelos ventos que sopram na Europa (v.g., os casos francês e espanhol), bem como pela crescente regulamentação em temas digitais (v.g., o regulamento geral de proteção de dados), decidiu seguir outro caminho e avançar com uma proposta de lei. Vejamos, então, o que nos traz esta proposta neste particular.

O direito a desligar é-nos apresentado como o direito dos trabalhadores a “desligar dispositivos digitais fora do horário de trabalho, por forma a garantir o direito ao descanso e ao lazer, a conciliação da atividade profissional com a vida familiar, e a intimidade da vida privada, sem prejuízo dos contactos a realizar pelo empregador em casos de urgência de força maior ou no quadro de relações profissionais de confiança pessoal” (cfr. artigo 16º do referido Projeto de Lei).

Sem prejuízo de se reconhecer a bondade dos objetivos subjacentes a esta proposta (v.g., a necessidade de existir um work-life balance, reconhecidamente atropelado pelo desenvolvimento galopante dos equipamento eletrónicos e aplicações informáticas), certo é que a redação encontrada encerra em si algumas questões que importam esclarecer, algumas das quais procuraremos identificar.

Desde logo, cremos ser importante clarificar a que universo de “dispositivos digitais” se reporta, se apenas aos atribuídos pela entidade empregadora (e não “entidade patronal”, como terminológica e erradamente é referida no projeto de lei) ou se também aos dispositivos pessoais dos próprios trabalhadores.

Do mesmo modo, o conceito “urgência de força maior” parece de alguma forma redundante, uma vez que, em tese, os casos de força maior serão urgentes. Acresce que, são comummente identificados como casos de força maior as situações de catástrofe natural, atos de guerra, declarada ou não, de subversão, alteração da ordem pública, bloqueio económico ou incêndio. Ora, uma vez que (e ainda bem) são espartanos o número de situações em que casos de força maior se verificam, a sua inclusão faria desta norma “letra morta”. Assim, e para facilitar a própria redação da lei, seria suficiente a menção em casos de “urgência”.

Neste sentido, seria igualmente importante refletir sobre o conceito de “relações profissionais de confiança pessoal”, o qual parece demasiado amplo e dado a diversas interpretações. Pense-se no caso de um diretor que liga a um trabalhador pelas 23h para discutir um qualquer tema de trabalho. O diretor pode sempre invocar a existência de confiança pessoal entre ambos para justificar o telefonema, a qual, na verdade, pode nem existir, e sem a qual o dito telefonema não poderia existir.

Acresce que, o presente Projeto de Lei aparenta excluir do respetivo escopo de aplicação os trabalhadores que tenham celebrado com as respetivas entidades empregadoras acordos de isenção de horário de trabalho na modalidade de não sujeição aos limites máximos do período normal de trabalho. Seria importante esclarecer se também estes trabalhadores beneficiam (ou não) do direito a desligar.

Finalmente, neste Projeto de Lei não se encontram previstas quaisquer sanções para o respetivo incumprimento, pelo que sem o efeito cominatório poderá não existir um verdadeiro elemento dissuasor para as entidades empregadoras (nem sequer um mecanismo que funcione como placebo).

Sem prejuízo do acima exposto, andou bem o grupo parlamentar do Partido Socialista ao não se deixar influenciar pela proposta do legislador francês de apenas prever o direito a desligar para o universo de empresas com 50 ou mais trabalhadores (a famosa “Loi El Khomri”). Sendo o nosso tecido empresarial maioritariamente composto (mais de 95%) por micro e pequenas empresas – i.e., empresas que empregam menos de 10 e 50 trabalhadores, respetivamente – a existência de um âmbito de aplicação análogo ao francês determinaria que a lei teria um espectro reduzido de destinatários.

Existe tempo, espaço e margem para melhorar significativamente o Projeto de Lei em causa. Trata-se de uma matéria em relação à qual, até à presente data, não se conhecem quaisquer litígios e/ou decisões judiciais, pelo que, ao legislar sobre a mesma, então que os passos dados sejam certos e sólidos, sob pena de conduzir a um (certamente que não desejado) aumento da litigância laboral.