28 biliões de euros – triliões à americana – é a dívida do sector não financeiro da Zona Euro, cerca de 268% do respectivo PIB. Em Portugal, este número é de cerca de 608 mil milhões – biliões americanos –, 330% do PIB (dados de setembro de 2016 do BIS). Estranhamente, qualquer solução para a redução destes níveis de endividamento, assim como para o fraco crescimento económico que se tem verificado terá forçosamente que passar por mais dívida… Tentarei (e provavelmente falharei) explicar porquê nas próximas linhas, falando também um pouco de algumas das razões que nos levaram a estes níveis de endividamento.

Quase todos os dias gastamos dinheiro, consumimos, fazemos pagamentos a empresas que nos vendem os seus produtos. Parte das receitas destas vendas pagará salários que, por sua vez, serão utilizados novamente para pagar os produtos que consumimos. Outra parte servirá para comprar bens a outras empresas, que usarão estas receitas para pagar aos seus trabalhadores, o que permitirá que estes adquiram os produtos que pretendem. Uma outra parte terá como destino o pagamento de impostos, que permitirá ao Estado pagar aos seus trabalhadores e pensionistas para que estes possam consumir o que necessitam.

Este fluxo de dinheiro entre pessoas, empresas e Estado é essencial – é uma condição necessária mas não suficiente – à actividade económica e quando é reduzido, as consequências em termos de produção e emprego são imediatamente sentidas. Esta forma de ver a economia, como um fluxo circular de fundos, foi conceptualizada pela primeira vez pelo fundador da escola fisiocrática, François Quesnay, que além de economista era cirurgião e comparava este fluxo ao sistema circulatório do corpo humano. Actualmente, a escola que baseia a sua abordagem nesta perspectiva com um enfoque no carácter endógeno do dinheiro é a teoria do circuito monetário, uma escola com grande afinidade e influência nos pós-keynesianos.

A forma como a esmagadora maioria do dinheiro entra neste fluxo circular de fundos é através de empréstimos bancários. Quando uma pessoa ou empresa pede um empréstimo bancário para comprar um bem ou um serviço, está a adicionar dinheiro a este fluxo. Da mesma forma, quando pagam um empréstimo ao banco estão a reduzir a quantidade de dinheiro em circulação neste fluxo. O pagamento de um empréstimo não é mais que a extinção simultânea de um depósito bancário e de uma dívida ao banco.

Outra “fuga” importante está no acto de poupar, quando pomos dinheiro de lado. Quando não gastamos tudo o que recebemos, apesar de não estarmos a destruir o dinheiro, estamos a reduzir o fluxo de fundos em questão (que é diferente do total de dinheiro existente na economia). Para que o fluxo aumente, acompanhando o crescimento económico que se pretende, é necessário que as injecções de dinheiro sejam superiores às fugas, ou seja são necessários novos empréstimos, novo endividamento em número suficiente de forma a compensar os desejos de poupança das famílias e os empréstimos que vão entretanto sendo pagos.

É aqui que importa distinguir entre os diferentes tipos de dívida e o seu efeito na economia. Numa primeira categoria encontram-se os empréstimos contraídos pelas empresas direccionados para aumentar ou melhorar a capacidade produtiva da economia, aumentando também o seu rendimento e a sua capacidade de os pagar. Numa segunda categoria incluem-se os empréstimos para o consumo e para novas habitações. Neste caso, apesar de o efeito não ser tão benéfico para a robustez da economia como no caso anterior, ainda assim o valor destes empréstimos entra directamente no fluxo de fundos, contribuindo para a produção de bens e serviços e para a criação de emprego. Na terceira categoria encontram-se os empréstimos para a aquisição de activos já existentes, como casas, empresas ou activos financeiros. A percentagem deste dinheiro que chega à economia real, ao fluxo referido anteriormente, é ínfima, sendo a sua principal consequência a subida de preços dos activos em questão, as tão famosas bolhas.

Empréstimos para aquisição de casas ou de empresas rentáveis, são dos mais apetecíveis para os bancos. Estes activos geram rendimentos com algum grau de certeza, rendimentos dos quais se podem pagar esses empréstimos com os respectivos juros. Quantas pessoas não compraram casa a crédito para alugar a alguém, pagando o empréstimo com as rendas que recebiam? E quantas empresas são adquiridas pelo mundo fora com dívida que depois é paga pelos lucros que esta já dava e que se prevê que continue a dar? O valor destes activos passa a ser, em grande parte, determinado pelo maior licitador, pela pessoa disponível a contrair o maior empréstimo, podendo em último caso destinar todo o rendimento obtido por esse activo ao pagamento do empréstimo. No final do dia sempre ficarão com o activo, nada mau…

Quando a grande maioria dos empréstimos são pertencentes à primeira categoria, que aumentam a capacidade da economia de gerar rendimentos necessários para o pagamento desses empréstimos, dificilmente se atingem os níveis de endividamento que hoje se verificam. Por outro lado, quando a quantidade de empréstimos das restantes categorias chega a certos patamares, é expectável que o endividamento em percentagem do PIB atinja níveis alarmantes. Foi isso que aconteceu antes da crise financeira nos EUA, onde o crescimento foi assente sobretudo no endividamento das famílias. Economistas atentos a estas variáveis, com uma abordagem baseada numa análise de balanços e de fluxos financeiros, conseguiram prevê-la, alertando para a insustentabilidade destes elevados níveis de endividamento.

Níveis elevados de endividamento são prejudiciais porque a esmagadora maioria destes empréstimos terão que ser pagos com rendimento retirado do fluxo já referido, da economia real. E quanto maior for o valor destes empréstimos quando comparado com o rendimento da economia, o tal endividamento em percentagem do PIB, mais complicado é. Imagine-se a sequência de pagamentos descrita no início deste texto, mas retirando-se em cada passo do processo uma fatia considerável do rendimento das pessoas, das receitas das empresas e dos impostos cobrados pelo governo, para o pagamento de empréstimos. É este o cenário em que nos encontramos actualmente.

As empresas não financeiras da Zona Euro devem 103% do PIB, que percentagem das suas receitas não será canalizada num futuro próximo para pagar essa dívida? E as famílias da Zona Euro, que devem 59% do PIB, quanto do seu rendimento não terá como destino o pagamento dessa dívida durante os próximos tempos? E os governos da Zona Euro, com 90% do PIB de dívida, e ordens para apertar o cinto, que quantidade de rendimento não terão que absorver para pagar essa dívida? No nosso caso os números são ainda mais assustadores, mas o problema e sobretudo a solução são mais Europeus que nacionais.

O caminho passará, como referi, inevitavelmente por mais dívida – só desta forma é possível reforçar o fluxo que alimenta toda a actividade económica –, mas desta vez direccionada à economia real, ao investimento em bens tangíveis. Dívida que estenda o fluxo de fundos a mais gente, que o fortaleça, criando maior capacidade de produção e de gerar rendimentos e que permita ir pagando algumas das dívidas anteriormente contraídas. Quem decide, acha que facilitar as condições de acesso ao crédito às empresas e um modesto plano de investimento a nível europeu é suficiente para sairmos desta alhada sem a necessidade de um significativo perdão de dívida. Tenho muitas dúvidas que assim seja e creio que mesmo que resulte, duvido que seja a tempo de evitar o fim do Euro.

Uma coisa é certa, é importante rever a forma como o dinheiro entra na nossa economia. Um sector financeiro com rédea solta não deixará de conceder os empréstimos que lhes são mais vantajosos, mas que são os mais prejudiciais para o resto da sociedade. Terminando, recomendo este documentário, Princes of the Yen (baseado no livro, com o mesmo nome, do economista Richard Werner), que descreve os efeitos, no Japão, da passagem de um sistema de concessão de crédito coordenado e orientado para fins produtivos, para um sistema livre com o inevitável crescimento de empréstimos menos desejáveis. Outro economista cujo trabalho se tem focado no papel do sistema financeiro e nas consequências da livre concessão de crédito para fins não produtivos é Michael Hudson, do qual recomendo este artigo coautorado com Dirk Bezemer, este livro ou esta palestra.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.