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O que ‘Downton Abbey’ não contou: as vidas miseráveis das criadas nas mansões vitorianas

Os patrões da época vitoriana, com todas as vantagens implicadas, viviam ainda com a consciência tranquila porque socialmente os trabalhadores domésticos eram considerados seres “diferentes” ou “inferiores”, o que até ajudou a justificar moralmente a exploração infantil e o abuso sexual, recorrentes na época, para além das condições precárias de trabalho.
17 Maio 2022, 19h00

Numa altura em que o segundo filme que serve de sequela à série britânica ‘Downton Abbey’ chegou às salas de cinema europeias, o “El País” destaca o que ficou para trás de mais de uma década de época vitoriana televisionada: os contornos sombrios da vida dos criados das mansões e as condições miseráveis em que trabalhavam, que sob o olhar do século XXI se assemelham a escravidão.

Harriet Brown tinha dez anos em 1879 quando começou a trabalhar como empregada numa mansão no subúrbio de Londres. Pouco depois, escrevia à sua mãe: “Levanto-me às cinco e meia ou seis da manhã e não vou para a cama antes das doze da noite e às vezes estou tão cansada que não tenho escolha a não ser chorar. Se não fosse pelo óleo de fígado de bacalhau que estou a tomar, acho que estaria de cama”.

Duas décadas depois, a história repetiu-se com a sua filha Ellen que, com a mesma idade, tornou-se a oitava doméstica de uma outra casa na capital britânica. Como novata que era, tinha as tarefas mais difíceis: teve de escovar pisos de madeira com uma mistura de sabão líquido e poeira de sílica que deixou as suas mãos e antebraços em carne viva.

Um pouco mais longe, no Condado de Yorkshire, uma outra criança, Elizabeth Simpson, também de dez anos, iniciou a sua vida laboral em 1863. Tinha de se levantar diariamente às quatro da manhã para esfregar o chão de pedra da leitaria com água fria, iluminada por uma vela que empurrava enquanto avançava de joelhos, e bater manteiga até os braços doerem. Mais: a mansão tinha como regra estabelecida que nenhum membro da família a podia ver. Caso isso acontecesse, não deveria falar, mas fazer uma vénia e desaparecer o mais rápido possível.

Estas e outras histórias de vida encontram-se no livro ‘Not in front of the servants‘ (‘À frente dos criados, não!’, em português, apesar de não haver tradução disponível da obra), de Frank Victor Dawes, citado pelo jornal espanhol. A compilação de centenas de depoimentos de trabalhadoras domésticas desmonta a imagem idílica da vida quotidiana de uma família vitoriana e dos seus criados transmitida por ‘Downton Abbey’, nos moldes da antecessora ‘Up and Down‘, da década de 1970: tudo parece estar onde e como tem de estar, tanto objetos quanto pessoas, isto é, felizes no seu devido lugar.

Filho de uma doméstica que começou a trabalhar aos 13 anos, o jornalista britânico que já morreu quis investigar as razões do declínio da profissão: do milhão e meio de pessoas que havia até ao início da guerra, restavam menos de 100 mil nos anos setenta. Depois de publicar um anúncio num jornal em 1972, recebeu cerca de 700 cartas em poucos meses, que serviram de base para escrever o seu livro, que se tornou best-seller um ano depois, no auge de ‘Up and Down’.

Estes trabalhadores dificilmente tinham algumas horas livres por semana, podiam ser demitidos por capricho e descansavam em condições deploráveis. A título de exemplo, Violet Turner, que trabalhava numa pensão nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, dormia no quarto de banho numa cama dobrável.

Nem os domésticos nem os patrões questionavam a sua posição porque supunham que a sua posição na vida respondia a uma ordem divina. “A Bíblia foi usada para convencê-los a reconhecer a superioridade daqueles a quem serviam”, explica Dawes. Já dizia a Carta aos Efésios: “Servos, obedecei aos vossos senhores no mundo, com temor e tremor (…) cumprindo de coração a vontade de Deus”.

Já os patrões, com todas as vantagens implicadas, viviam ainda com a consciência tranquila porque socialmente os criados eram considerados seres “diferentes” ou “inferiores”, o que até ajudou a justificar moralmente a exploração infantil e o abuso sexual, recorrentes na época.

“Quanto às criadas e mulheres das classes mais baixas […] todas fornicavam em segredo e orgulhavam-se de ter um cavalheiro que as encobria. Essa era a opinião dos homens do meu estilo de vida e da minha idade”, revela um cavalheiro vitoriano nas suas memórias que publicou anonimamente, em 1890, em ‘My Secret Life’ (‘A Minha Vida Secreta’, em português). “Se, como acontecia frequentemente, uma jovem criada engravidava de um membro da família em que servia, a culpa recaía diretamente sobre ela, não sobre ele”, diz Dawes. Muitas foram demitidas sem referências, o que as levou a manicómios ou à prostituição.

O estatuto dos criados justifica ainda a negligência de que foram alvo até pelo movimento pelos direitos das classes trabalhadoras até ao século XX. “Considero que qualquer possibilidade de introduzir no serviço doméstico o tipo de relação que agora existe entre empregadores e trabalhadores no campo industrial poderia ter uma influência desastrosa sobre os fundamentos da vida doméstica”, escreveu a marquesa de Londonderry, bisavó de Winston Churchill, numa carta da década de 1920 que manifestava a sua resistência à regulamentação do setor.

Assim, demorou mais de uma década para que fosse reconhecido o seu direito a salário mínimo e pausas, fossem folgas ou horários mais justos. Porquê? Em parte porque, com o eclodir da Primeira Guerra Mundial, houve necessidade de mão-de-obra feminina nas fábricas, o que fez com que muitas mulheres descobrissem que poderiam conseguir empregos melhores. Mesmo que os salários não fossem mais altos, pelo menos não eram tratadas como escravas. Foi o início do declínio da idade de ouro das domésticas no Reino Unido e, com isso, o colapso de um modo de vida em que a posição social de uma família era medida pelo número de empregados que possuía.

Ainda recentemente veio a público um caso – em pleno século XXI – de uma mulher de 86 anos no Brasil que foi resgatada este ano após sete décadas a trabalhar escravizada: trabalhou para três gerações de uma família sem ganhar um ordenado nem ter férias.  Quando as autoridades a encontraram, dormia num sofá fora do quarto da sua patroa.

“Em inglês, maid [criada] é uma palavra refinada, que evoca serviços de chá, uniformes impecáveis e a série Downton Abbey. Mas na vida real, o mundo das trabalhadoras domésticas está cheia de sujidade e restos de merda. Essas mulheres limpam os nossos de pelos púbicos, são testemunhas silenciosas da nossa roupa suja, literal e metaforicamente. No entanto, são relegadas à invisibilidade”, escreveu a ativista norte-americana Barbara Ehrenreich no prólogo do de Stephanie ‘Land Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother’s Will to Survive’.

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