Em apenas 10 anos, sob a estratégia de José Ferreira Machado, a Nova SBE adquiriu o estatuto da mais internacional instituição de ensino superior português. As suas ideias, em contracorrente, fazem-nos acreditar que é possível reformar o atual modelo universitário. Eis três propostas: Acabar com os numerus clausus, liberalizar as propinas e contratar diretamente professores.
Olhando para o que o ensino superior é hoje, diga-me em duas palavras o que vê.
Até lhe posso dizer numa palavra. Eu vejo: diversidade.
Pode explicar?
Eu sou muito crítico da expressão sistema de ensino superior. Porque a expressão sistema de ensino superior sugere uma uniformidade que não existe. Uniformidade de missões, uniformidade de objetivos, uniformidade de ambições, uniformidade de abordagens… não existe! Esta ideia de tratar o ensino superior como um sistema, um fato de pronto a vestir onde todos têm de caber, é algo que tolhe muito o seu desenvolvimento. Portanto, eu diria que o que me sugere é: diversidade. Diversidade de problemas, diversidade de ambições e umas autoridades académicas centrais que gerem muito mal, que convivem muito mal com esta diversidade. Penso que, por vezes, acham que a diversidade é um mal, quando, na realidade, a diversidade é um bem que deve ser acarinhado para ser expandido.
Podemos começar pelos problemas.
Eu preferia começar pela diversidade de ambições. Em Portugal, começamos sempre pelos problemos, mas os problemas são muito menos importantes do que as ambições. Porque só existem problemas relativamente a ambições. Se não tiver a ambição de fazer algo, não posso dizer que o sistema de ensino superior como um todo está mal financiado… Porquê? Porque há instituições que têm uma ambição tão baixa que para aquilo que fazem, se calhar, até têm financiamento excessivo. Não acho que se possam definir problemas sem falar em ambições.
Falemos, então, de ambições. Qual é essa diversidade que refere?
Eu vou procurar varrer o espetro todo. Temos instituições de ensino superior cuja existencia está associada a meros problemas de desenvolvimento regional. São muitos dos politécnicos e das universidades do interior, embora nem todos estejam no mesmo grupo. O facto de terem sido criados como instrumento de desenvolvimento regional deu origem a um problema muito grande. Independentemente da sua qualidade e da sua performance, não se pode acabar com eles, porque senão as zonas onde estão inseridos ruiriam.
Outras instituições sobrevivem e formam a massa de estudantes que a democratização do acesso ao ensino superior criou e cujo objetivo é proporcionarem uma formação mais ou menos decente aos estudantes que as abordam. Correspondem, penso eu, ao grosso das instituições e muitas estão em áreas onde não existe procura no mercado de trabalho.
Depois temos outras universidades que ambicionam, ou têm dentro de si unidades que ambicionam competir internacionalmente.
Um mundo…
Face a estas ambições, face a esta diversidade de objetivos, só podemos concluir que temos diversidade de concorrentes. Para algumas instituições, as concorrentes são instituições internacionais e para outras é uma outra escola nacional… Temos diferentes posicionamentos e diferentes ambições face a estes diferentes posicionamentos. Um sistema que é igual para todas cria diferentes problemas.
O financiamento é geralmente apontado como um dos problemas.
Existem áreas onde o financiamento está muito mais dependente do Orçamento do Estado e outras que têm muito mais possibilidade de obter fundos próprios. Isto também gera diferentes comportamentos. Conforme as áreas, conforme os funcionamentos, conforme as ambições, assim, os problemas. Para a minha escola, o principal problema não é o financiamento público da instituição, é termos um patrão que, mais do que nos dar dinheiro nos impede de ir buscar dinheiro. Tenho a certeza que se perguntar ao Instituto Superior Ténico lhe dirão a mesma coisa mas, se perguntar a uma universidade do primeiro grupo ou do segundo que enumerei, seguramente lhe dirão que o problema é o financiamento público. Por exemplo, eu não estou seguro que haja pouco dinheiro doado para a ciência. Não concordo nada com isso. Até acho que há um excesso de investimento em ciência de pouca qualidade. Como não estou nada seguro que o problema do ensino se resolva com mais dinheiro para o ensino. Se calhar, é preciso distribuir melhor… até pode ser que seja preciso mais dinheiro mas mas, para mim, carece de demonstração.
Num artigo que publicou no Expresso sintetizou assim: O problema do ensino superior não é o financiamento, mas a margem de ação estreita da gestão. Pode explicar?
Uma questão muito interessante que me tem preocupado muito é porque é que os sucessivos governantes – muitos deles vindos das trincheiras do ensino superior – têm esta abordagem controladora, uma vez chegados ao poder. Acho que quem articula melhor isso é o atual Secretário de Estado. Nunca me o disse, mas penso que o receio dele é “se dou muita liberdade à instituição A – que até a pode merecer – estou a aumentar a responsabilidade do contribuinte. Porque se a instituição A é pública e eu a deixo fazer muitas experiências e se essas experiencias dão para o torto, em última análise, quem vai pagar a fatura é o contribuinte”. Isto em si mesmo é verdade mas tem solução. Só que eu acho que não é possível alguém no Ministério ter a solução. É preciso abrir possibilidades à experimentação. Libertar um bocadinho as coisas para saber que modelos é que funcionam melhor.
Reorganizar aos poucos?
O problema da reorganização é quem é que vai decidir e o que é que vai fechar.
Isso tem de ser decidido em cima.
Não. Só pode ser em baixo. Eu acho que só pode ser decidido em baixo. Se, por exemplo, eu disser “acabo com o numerus clausus”, naturalmente, os estudantes vão escolher as melhores universidades. Há umas que vão ter menos alunos e essas são as candidatas a fechar ou a reformar-se, em vez de ser eu (governante) a dizer de cima que vão fechar as instituições A e B ou que vamos fundir a instituição C e a D. Ao eliminar o numerus clausus permito que sejam as escolhas dos estudantes, baseadas na qualidade das escolas, que determinam a geometria do sistema de ensino.
É uma boa sugestão para o próximo ministro da Educação.
Aqui deixo o apelo para os próximos ministros: criem mais formas do sistema se ajustar endogenamente ao invés de virem com ideias pré-concebidas. Por exemplo, o acordo que foi criado agora das Universidades do Norte (Minho, Porto, Trás-os-Montes), apesar de não ser muito profundo, é uma solução endógena. O que eu acho é que o governo tem de criar um sistema de caules e cenouras. Ou seja, mais do que definir que isto ou aquilo vai ser desta e daquela maneira, é necessário criar um sistemas de incentivos que leve as universidades a fazer.
Acabar com o numerus clausus poderia ser a primeira etapa?
Há duas ou três medidas que eu tomaria. Acabar com o numerus clausus é uma delas. Em sua substituição proponho um modelo que fixe apenas tetos agregados ao número de alunos financiados pelo Orçamento do Estado. E proponho também liberalizar as propinas. Liberalizar não significa que o Estado retire o seu financiamento às instituições. Não. Atualmente, cada escola pública recebe, anualmente e em termos médios, 1000 euros de propinas por aluno e mais cerca de 3 mil do Orçamento de Estado. Tendo estes valores como referência, defendo um modelo que permita cobrar uma propina de 4 mil euros e que o Estado atribua uma bolsa de estudo de 3 mil euros a todos os alunos admitidos no ensino superior através do concurso nacional de acesso e que se enquadrassem no numerus clausus agregado.
O que o professor está a dizer é que isto resolvia-se dando o dinheiro aos alunos em vez de o fazer às instituições.
É preciso dar mais escolha. Repare numa coisa, o estatuto do estudante internacional que vai permitir que as as universidades admitam estudantes internacionais acima do numerus clausus, cobrando as propinas que quiserem, vai criar um problema complicadissimo. Por hipótese, a senhora tem um filho que não entra na minha universidade, mas a senhora que está ao seu lado e que é estrangeira tem um filho que vai para a minha escola porque ela está disposta a pagar o que eu cobrar.
A senhora também podia mas vai ter que colocar o seu filho numa universidade privada, muitas vezes de pior qualidade, porque não beneficia das mesmas condições. E isto apenas porque ela é estrangeira e a senhora não é. Isto vai criar um mecanismo de grande desigualdade e eu não vejo qual é o motivo que impede as universidades de admitir alunos cima do numerus clausus.
Mas há um limite de capacidade.
Está bem. Mas isso é como em tudo. Eu não digo à Zara quantas camisas pode vender. Ela vende a sua capacidade. Eu não limito o número de pessoas que podem ir comer a um restaurante. O restaurante é que define qual é a sua capacidade. A abolição do numerus clasusus não significa que uma escola vá ficar com todos os alunos, nem uma escola quereria isso. Significa que são as escolas e os alunos a definir quem fica com quem. É a isto que chamo o redesenho endógneo do sistema de ensino.
Muito arrojado.
É radical. Outra reforma, muito simples e que também seria radical seria proibir que as universidades recrutassem os seus próprios doutorados. Grande parte dos problemas da academia portuguesa em que 80% dos professores se formam na sua própria instituição é que cria instituições muito viradas para dentro e de caráter extraordinariamente feudal. No fundo, é a razão pela qual os cães de raça mais apurada são aqueles em que os pais se cruzam com as filhas. São os mais bonitos, mas são também os mais frágeis. É mau, muito mau, porque não cria uma dinâmica de recrutamento de doutorados de umas universidades para as outras. Isto resolvia-se com meia dúzia de linhas de legislação.
Qual é a terceira medida que tomaria?
Fala-se muito da capacidade de atrair professores, ao fim e ao cabo para combater a fuga de cerébros. De facto, eu tenho que ser capaz de reter os melhores professores e os melhores investigadores em ambientes concorrenciais. Para o fazer, tenho, muitas vezes, que lhes dar melhores condições monetárias. Obviamente, eu, no seio de uma instituição pública, não posso comprometer-me a duplicar um determinado salário porque estaria a assumir uma responsabilidade para o Estado, a tal responsabilidade que fica para o contribuinte… Mas há formas de fazer isto.
Quais?
Eu acho que as instituições públicas deviam poder criar veículos privados onde fizessem contratos de natureza privada com professores. É a forma de atrair os melhores. No fundo era como se eu chegasse a uma empresa e dissesse: “contrate-me o professor x e pague-lhe y”. A responsabilidade era da empresa e a função dele era dar aulas na minha escola. Posso ter contratos estritamente privados com professores e aí o risco é o mesmo do que quando alguém vai trabalhar para um banco ou para uma empresa. Se forem à falência ou deixarem de pagar é a lei geral do trabalho que resolve. Esta ideia de permitir que as escolas públicas tenham colaboradores não públicos, com contratos não públicos, significa retirar os professores da esfera da função pública.
Para os interesses instalados uma medida destas equivalaria a caírem o Carmo e a Trindade…
Provavelmente é por eu não conseguir ter apoios que esta coisa de redesenhar o “sistema” do ensino superior (certamente pessoas muito inteligentes conseguiriam fazê-lo) parece-me uma obra de engenharia social relativamente complicada de conseguir concretizar de forma satisfatória. Acredito muito mais na criação de dois ou três mecanismos (não pretendo ser exaustivo) que libertem energias e que permitam endogenamente o sistema adaptar-se.
Como é possível não ter apoios? Nem entre os os seus pares?
Há para aí umas 10 pessoas, na melhor das hipóteses, que partilham esta visão… e nos dias bons. Este modo de abordar os problemas do ensino e que equivale a uma forma de abordar os problemas da sociedade, não é comum. Certamente, nunca encontrei um governante que a partilhasse, pelo menos, com responsabilidades na área da Educação.
Perdemo-nos em questões de lana caprina?
Não, desculpe. Eu acho que como queremos reformar tudo ao mesmo tempo, somos muito avessos ao risco. Porquê? Porque o problema que temos pela frente é enorme. Nós queremos fazer uma reforma de A a Z, de norte a sul, de este a oeste, em todas as dimensões e dói porque o risco de errar é enorme. Esta minha abordagem advém de uma modéstia e de eu não saber qual é o desenho final.
Tem toda a razão. Fazer as coisas por fases comporta menos riscos.
Eu acredito muito em ir fazendo por tentativa e erro, criar experiências, avaliar… Acho que quando os governantes chegam ao Ministério ficam possuídos por aquela máquina poderosa, passam a ter esta visão total e a querer fazer uma reforma global. Este é um problema de uma dimensão tal que se me pedissem a mim, eu só saíria com soluções conservadoras, porque teria medo de errar.
Nestes dez anos em que foi Diretor da Nova School of Business and Economics (Nova SBE) trilhou um caminho muito bem sucedido. Não foi seguramente por acaso.
Nós sobretudo experimentámos – não acho que tenha sido eu especificamente – e resultou. Tenho pensado – agora que esta responsabilidade chegou ao fim – um bocadinho nas coisas certas, nas coisas menos certas e concluo que, na realidade, o mérito que tivemos aqui na Nova SBE foi termos aproveitado muito bem as oportunidades que se nos foram deparando. Percebemos muito bem o que Bolonha representava e aproveitamos. Percebemos muito bem a oferta que o governo da altura nos fez referente ao MBA e à colaboração com o MIT e aproveitámos.
Bolonha alterou o quadro competitivo, como é que o vamos explorar? Disto vem a ideia do novo campus que estamos a construir e a ideia de ir para Angola. (…) A genesis de tudo, o momento definidor, foi Bolonha – e isso foi uma sorte, mas o modo como usámos Bolonha já não é sorte. Há um misto de sorte e de ousadia que eu acho que resultou.
Como vê as relações de Portugal com o mundo na área do ensino superior?
Portugal tem um enorme potencial para ser um cluster importante de exportação do ensino superior por três ordens de razões: a qualidade da nossa academia, uma gente e um clima extraordinariamente agradáveis e o fator geogestratégico que é a nossa ligação ao mundo que fala português. Temos excelentes instituições e podemos oferecer formação de qualidade a jovens de todo o mundo, ao nível do que de melhor se faz lá fora, sobretudo ao nível das licenciaturas.
Já pensou no que vai fazer no dia seguinte a deixar o cargo de Diretor da Nova SBE?
Já pensei no que é que gostaria de fazer. Não pensei no que é que vou fazer.
Almerinda Romeira