Há quase 14 anos, o brasileiro Luiz Felipe Scolari, à data selecionador português, protagonizou uma célebre conferência de imprensa no final do Jogo Portugal-Finlândia, que garantiu o apuramento da seleção nacional para o Euro 2008, após um empate a zero, referindo: “Portugal consegue a qualificação e o burro sou eu? O ruim sou eu? O errado sou eu ?!”

Passada mais de uma década, a frase que ficou célebre pela boca de Scolari pode bem ser utilizada para transmitir a perplexidade que resultou para o cidadão português comum da decisão instrutória proferida na semana passada pelo Juiz Ivo Rosa no megaprocesso conhecido como Operação Marquês.

Com direito a transmissão em direto por todas as televisões, Ivo Rosa prestou um péssimo serviço à Justiça, colocando em causa a imagem desta e fazendo com que todos saíssem derrotados no final da tarde da passada sexta-feira.

Na realidade, mais do que questionar a bondade das diversas decisões tomadas pelo juiz Ivo Rosa, as quais são, recorde-se, provisórias, há que atentar à forma como as mesmas foram publicamente proferidas. É que, como à mulher de César não basta sê-lo, é preciso, igualmente, parecê-lo, também à Justiça se aplica esta máxima, sendo fundamental a perceção que a opinião pública tem das decisões tomadas pelos magistrados em processos judiciais especialmente complexos e mediatos.

Não se pode nunca ignorar que uma sociedade que não confia nas suas instituições, em especial nas que integram o sistema judicial, caminha a passos largos para questionar a democracia e o seu funcionamento, transformando-se num terreiro de fácil implantação para todos aqueles que, defendendo ideias populistas, criticam ferozmente as fragilidades do sistema.

Ora, Ivo Rosa disparou em todas as direções, utilizando uma linguagem excessivamente colorida, adjetivando negativamente a atuação de todos os sujeitos envolvidos na Operação Marquês, os quais pareceram estar na mira do Juiz, decidido em saltar para as luzes da ribalta, numa postura que lhe é unanimemente reconhecida de excessivo zelo pelos interesses dos arguidos.

Primeiro, Ivo Rosa começou por questionar a intervenção do seu único colega no Tribunal Central de Instrução Criminal, o célebre Ticão, o conhecido juiz Carlos Alexandre, suscitando a falta de transparência na atribuição inicial do processo ao mesmo, ao mandar extrair uma certidão destinada a investigar o sorteio, eventualmente violador do princípio do juiz natural, de que resultou, entre outras consequências, a detenção de José Sócrates e, mais tarde, a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro, indiciado por fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e corrupção passiva para ato ilícito, durante mais de nove meses, chegando à conclusão de que “poderão estar em causa factos com relevância criminal relacionados com a distribuição de processos no Tribunal Central de Instrução Criminal no período compreendido entre setembro de 2014 e abril de 2015″.

Apontou, pois, baterias para o Juiz Carlos Alexandre e para o Ministério Público, fornecendo munições a José Sócrates que, no final da leitura da decisão instrutória, não hesitou em aproveitar em presente do Juiz Ivo Rosa, dizendo, alto e bom som, que a distribuição do processo da Operação Marquês ao Juiz Carlos Alexandre foi manipulada e viciada, e acusando o Ministério Público de ter “escolhido” aquele Juiz a dedo.

Num segundo momento, utilizando uma linguagem viperina que facilmente poderia constar do Livro dos Insultos de Léo Lins, arrasou o Ministério Público, que mais parecia o principal arguido da Operação Marquês, não deixando praticamente pedra sobre pedra da acusação, apelidando esta de “inócua, pouco rigorosa, fantasiosa, inconsistente, com puras especulações” e salvando apenas 17 dos 189 dos crimes imputados pelo Ministério Público aos 28 arguidos.

Depois, quanto ao principal dos arguidos, o ex-Primeiro-Ministro José Sócrates, acusado da prática de 31 crimes, tendo alegadamente recebido mais de 34 milhões de euros de luvas, pelo suposto favorecimento, enquanto governante, dos interesses dos outros arguidos, em negócios relacionados com o Grupo Lena, com a Portugal Telecom e com o empreendimento Vale do Lobo, ficámos a saber que o Juiz Ivo Rosa, numa ingenuidade pungente, considerou, atendendo aos testemunhos dos seus ex-colegas no Governo ou de seus subordinados, não haverem indícios suficientes da prática dos crimes de corrupção.

Mas, numa reviravolta inesperada, Ivo Rosa descobriu que, afinal, Sócrates foi mesmo corrompido, não por Joaquim Barroca, Ricardo Salgado e companhia, mas, sim, pelo seu melhor amigo, Carlos Santos Silva, que, num passe de mágica, se converteu de amigo a corruptor no espaço de poucos minutos, tendo pago a José Sócrates mais de 1,7 milhões de euros para comprar a sua boa vontade.

No entanto, assim como nasceu, rapidamente, este crime de corrupção passiva de Sócrates morreu, apagando-se a sua existência nas mãos do instituto da prescrição. Mas, quem pensa que Sócrates saiu vitorioso desta importante sexta-feira, desengane-se. Para além de corrupto, embora por tal já não possa vir a ser julgado, no entendimento de Ivo Rosa, ainda lhe viu serem imputados três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos, que poderão levá-lo a uma prolongada estadia num estabelecimento prisional do país.

Por último, o principal perdedor da tarde de glória de Ivo Rosa: a Justiça. A transformação de um processo desta dimensão num circo é um péssimo serviço prestado à sociedade portuguesa.

Quando entre os réus estão algumas das mais importantes figuras da política e dos negócios do país e no final, depois de pôr amplamente em causa a magistratura judicial e a magistratura do Ministério Público, um juiz dita que, dos 28 arguidos, apenas cinco irão a julgamento, um dos quais João Perna, o triste motorista de José Sócrates, pelo crime de detenção ilegal de arma, o povo, que pouco percebe dos meandros da Justiça e que tem uma clara perceção de que os ricos e poderosos, que dispõem de recursos para contratar os melhores advogados, saem sempre impunes dos crimes que lhes são imputados, ao passo que o cidadão comum vê-se muitas vezes a braços com a pagamento de multas ou mesmo o cumprimento de penas de prisão pela prática de pequenas infrações, acaba por deixar de confiar na Justiça e em todos os que a servem, acreditando mesmo que, afinal, os burros são eles.