Acabados de chegar a 2022, com eleições legislativas à porta, a pergunta pública mais previsível para estes dias é sobre que política queremos hoje para Portugal. O que não é tão previsível é a escassez de novidade nas grandes escolhas que vão estar sobre a mesa eleitoral. E este é um impasse antigo.

1. A longevidade de TINA

A pergunta sobre que política queremos não tem activado respostas novas, repetindo-se a de décadas passadas, apesar de um mundo em abrupta mudança. Há diferenças, mas é preciso ver o que sob elas se cristaliza. Sistematicamente, o “There is no alternative” que Margaret Thatcher profetizou num distante ano de 1980, tornou-se mantra nos anos 90, sob a forma de “fim da história” e “consenso”, e ganhou aura de reencarnação com o período de austeridade.

O denominador comum ao longo de décadas foi sempre o mesmo: a tese ou a convicção de que doravante só passaria neoliberalismo consensual nas rádios da nossa música económica. O trabalho da política estava terminado e restava o da administração da coisa pública. Além da maçada gestionária, apenas a vigilância ética sobre o que fazem os actores, pelo menos enquanto estes não puderem ser substituídos pela “smart” governação.

Com muita razão, alguma consciência politicamente mais apurada protestava e reivindicava o direito à alternativa como um direito a sermos senhores das nossas vidas, sujeitos de história, criadores de futuro. E esta não era uma questão ética, mas política. Aliás, um excesso de reivindicação ética auto-denunciava-se: visava menos uma melhor política do que ocupar o lugar que se esperava que ela deixasse livre.

Mudou alguma coisa, entretanto? Sim e não. Precisamente Portugal, até com grande relevo global, rompeu em 2015 com a grande cristalização ao romper com um outro bloqueio, politicamente interno, que excluía os partidos à esquerda do PS do chamado arco da governação.

A ousadia foi parcial pois esses partidos só viabilizaram soluções governativas mediante acordos, não chegando nunca a integrá-los. Mas foi ousadia mais que suficiente para que uma sociedade em processo de asfixia sacudisse o jugo e desmentisse a lei do “There is no alternative”.

A “Geringonça” foi a criação de alternativa política que surpreendeu e pôs fim ao programa «política sem alternativa» a que se chamou Austeridade. A solução estava em devolver, e não em cortar, rendimento às famílias. A alternativa contrária, portanto, com coragem! E se funcionava em Portugal, então a refutação empírica das pretensões teóricas da Austeridade era retumbante.

Do ponto de vista conceptual, a austeridade nunca fizera sentido – não faltaram prémios Nobel da Economia a dizê-lo –, mas para quem achava que o povo português era incorrigivelmente preguiçoso e despesista, a austeridade servia como um projecto de dominação social.  A austeridade era económica, mas o seu propósito era de subjugação social.

Portanto alguma coisa mudou realmente em 2015. Não foi uma revolução política, mas teve qualquer coisa de revolucionário. Curiosamente, a ainda jovem democracia portuguesa viveu mais história assombrada pelo TINA do que livre dele. A reacção à pandemia nos anos 2020 e 2021 ainda fez reverberar essa rejeição dos pressupostos do TINA. Foi a saúde pública, o SNS, e todos os outros instrumentos públicos activados na contenção dos efeitos da pandemia.

Num quadro de destruição massiva de emprego e rendimento, houve o discernimento – e alguma capacidade – de tudo fazer para que os impactos sociais fossem amortizados, e se não minorados pelo menos adiados. Muita coisa não correu bem, mas não por razões programáticas.

Contudo, o TINA persiste como um corredor de fundo. A sua “resiliência” é, por si só, um facto histórico de tremenda magnitude, que excede mesmo os termos em que habitualmente o descrevemos. Não há nenhum motivo para tranquilidade.

2. A patrimonialização da política

Dando um passo atrás e ganhando campo visual, não será o TINA apenas o detalhe de um quadro maior, todo um conjunto de alternativas cristalizadas? Mau grado as alternativas, que é que se tem inovado ao longo das décadas? Onde estão os programas políticos com novas respostas para as perguntas sobre como nos vamos entender num mundo em acelerada mudança?

A grande contradição dos nossos tempos é entrarmos já quase um quarto de século no novo milénio, mas quem nos regula a vida é a luta contra o TINA do último quarto de século do antigo milénio. Na verdade, o TINA é só uma expressão do TINA que vai ficando no corpo da sociedade. A lógica de mercado regula cada vez mais aspectos da vida, tendencialmente todos, incluindo aqueles que lhe deviam fazer frente, como a consciência e a acção políticas.

Se a relação dos partidos com as ideias políticas assenta numa relação de propriedade, nem que seja de posse moral, se a ideologia e a luta política são patrimonializadas, então já está tudo perdido para aqueles que acreditam no valor da causa pública e na virtude de a perseguir. A patrimonialização da política compromete-a ao misturar motivações públicas com motivações privadas, tornando-se estas o peso determinante na acção, ou a caminho de o ser.

Em partidos que exaltam a iniciativa privada e desprezam a autonomia do interesse público, a inexistência de qualquer entrave ideológico, faz com que não sobre outro motivo para alcançar o poder do que o interesse particular. O direito ao poder porque dantes era “nosso”, o direito ao poder porque se foi dele espoliado, mesmo se em eleições livres, o direito ao poder porque são muitos a viver dele é o subtexto ressentido de camadas de direita portuguesa, democrática e anti-democrática. No máximo, tolera-se uma alternância, mas dentro de um ciclo previsível, como se o poder fosse uma certeza a prazo, e a alternativa em democracia uma verdade muito relativa.

Mas mesmo à esquerda, a patrimonialização das ideias políticas é um problema que tem de ser olhado sem conformismos nem presunção de imunidade adquirida. Não é muito diferente dizer-se que o património é colectivo, é da classe dos trabalhadores, se dessa maneira se autoriza e pratica a mistura de motivações. A lógica do património não é fecunda porque de acordo com ela só tem valor o que é escasso. Isso vale para partidos, mas também para plataformas de cidadãos. Ironicamente, não faltam plataformas que usam das regras mais exclusivistas até no momento de apoiarem soluções inclusivas de entendimento à esquerda. A fragilidade é a mesma.

Aliás, a aceitação da lógica do escasso compromete a própria possibilidade de entendimentos em torno das grandes perguntas políticas. Divergissem mais, com ideias mais desentendidas, ou horizontes de possibilidades mais distendidos, e os benefícios do encontro e do entendimento seriam maiores. Mas entendidos na imobilidade ideológica, desentenderem-se torna-se uma compulsão de identidade. Freud baptizou o fenómeno como “narcisismo das pequenas diferenças” e, curiosamente, até deu como exemplo deste bairrismo identitário os portugueses na sua rivalidade com Espanha (curiosamente um tanto ultrapassada).

Vale o que vale. A explicação é outra: a redundância ideológica não é amiga do pluralismo. Não é que faltem partidos políticos, mas falta-lhes o empenho na inventividade da alternativa, inovação de ideias e práticas que justifique o entendimento. Tudo isso é secundário face ao seu estatuto de competidores uns com os outros. Devia ser o contrário.

3. Pandemia, mudança de paradigma

Concordaremos que a ameaça ao pluralismo não se debela com muitos partidos, mas com partidos que não agem como se fossem competidores por quotas de mercado. Os eleitores não são consumidores, os partidos políticos não são organizações privadas que visem auto-conservação e crescimento de margens, a partir do rendimento extraído dos seus activos ideológicos e organizativos, as suas palavras de ordem não são apelos ao consumo, a democracia não é um mercado.

Qual a diferença então? A interpretação do mundo social, o sentido para responder às perguntas irrenunciáveis: como nos vamos entender, entre nós, com os outros, com o mundo? Querer uma maioria de esquerda simplesmente porque não se quer uma maioria de direita é pouco. Querer o poder simplesmente porque já é tempo de regressar ao poder é ainda menos.

Eleições gerais deviam ser oportunidade para pensar o futuro e experimentar futuras maneiras de pensar, algumas tão urgentes que já deviam ter lastro. A pandemia foi um acontecimento global com profundo impacto em toda a sociedade, independentemente do género, da faixa etária, da etnia, da classe. Todas estas dimensões da desigualdade reverberaram interseccionalmente na sociedade, demonstrando como reduções abstractas a uma grelha de interpretação da realidade são um erro que já não se usa. Infelizmente há muita gente que continua, sem qualquer respaldo teórico ou científico, a afirmar, como uma fé, que tudo se explica pela luta de classes, pela infra-estrutura económica, tão devedores de um determinismo como a mais empedernida TINA.

A pandemia que precede estas eleições tornou impossível não se ver o que já se sabia há muito: como o tempo e o espaço, as nossas temporalidades e os nossos lugares, precisam de ser politizados.

Apesar da tremenda indiferença da campanha eleitoral em curso, duas reivindicações, especialmente, seriam incontornáveis: Parar deve ser um direito e não uma calamidade que se abate sobre as nossas vidas; e estar deve ser um direito e não um confinamento imposto. Faltam políticas do tempo como a do acesso a um rendimento básico incondicional, que liberte o tempo humano do tempo da produção, e impostos sobre as grandes heranças, que libertem o tempo das gerações futuras do das gerações passadas.

Falta uma política decrescentista das desigualdades. Porque se o problema do crescimento é o planeta não aguentar tanto, verdadeiramente as raízes do problema têm de ser encontradas nas motivações: o verdadeiro motor do crescimento é o do crescimento das desigualdades. Os problemas do planeta e os nossos coincidem grandemente. Desigualdades e crescimento insustentável são os dois lados da mesma moeda. Por isso é preciso programas políticos que assumam uma ecologia integral. Também com políticas de espaço, que protejam lugares existentes, nichos culturais por exemplo, como se fossem ecossistemas; e o direito a fazer novos lugares, inventá-los, como se fosse uma outra expressão de biodiversidade; e a ligação entre área de produção e área de consumo, sem ignorar a realidade da distância e da proximidade.

Cada vida humana distingue-se pelos lugares que faz; mas se apenas sobrevive, é porque se debate contra a impotência de fazer lugares. O mesmo é válido para os partidos políticos. Nem sequer é um problema de diversidade das ideias por que se interpreta o mundo social – em grande medida todas estas ideias já circulam –, mas um problema de interpretação sobre como cada partido e movimento políticos se comprometem e agenciam essa diversidade.

Como levam a sério a sua missão de transformar o mundo, em vez de sobreviver na competição por segmentos de “share”, “eleitorado” e rendimento numa sua moeda de câmbio chamada “poder”. Não se ouve nos debates uma reflexão para o milénio, para o século, sequer para a década seguinte. Regulam-se, passe o exagero, como sobreviventes de um “Squid Game”, que não por acaso é um fenómeno de audiências.

A pandemia exigia-nos estar a debater uma mudança de paradigma. Ignorá-la como se os seus impactos tivessem sido apenas um acidente de percurso bem significa como as alternativas se tornaram parte do TINA e o património de interpretações do mundo está cada vez mais distante do mundo de que, no entanto, fazem parte eleitores e não eleitores, pessoas, ambiente, todo o sentido de uma existência em comum. Alternativa mesmo é o TINA deixar de parasitar a democracia.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.