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Moisés Ferreira: “A legalização da canábis reduzirá o risco, o consumo desinformado e a manipulação de substâncias”

O BE vai avançar com um projecto de legalização do uso medicinal de canábis, logo no início de 2018. Em entrevista ao Jornal Económico, Moisés Ferreira, deputado bloquista e um dos proponentes da iniciativa, defende que “a ilegalidade da canábis é que traz riscos de saúde pública”.
21 Dezembro 2017, 07h35

Na semana passada realizou-se uma audição pública no Parlamento sobre a legalização da canábis, promovida pelo Bloco de Esquerda (BE). Que balanço é que faz dessa iniciativa? Serviu para dissipar eventuais dúvidas, angariar novos apoios, colocar o tema na agenda política?
Foi uma audição muito participada e participativa. Serviu para confirmar que há vários profissionais de saúde que defendem a legalização da canábis para fins medicinais porque consideram que a planta tem vantagens e benefícios terapêuticos. Serviu ainda para perceber que há, hoje em dia, muitas pessoas que esperam por essa legalização para poderem aceder, de forma legal, a tratamentos que lhe permitirão melhor qualidade de vida e controlo de muitos sintomas, como a dor, espasmos musculares, etc.

 

O BE vai avançar com um projecto de legalização do uso medicinal de canábis, no início de 2018. Porque é que esse projecto não abrange também o uso recreativo, como o BE e o próprio Moisés Ferreira defendem? Receiam não ter suficientes apoios políticos?
O BE sempre defendeu a legalização da canábis para fins medicinais e para os chamados fins recreativos. Continuamos a ter essa posição. A legalização para ambos os fins traz vantagens para os indivíduos e para a sociedade como um todo. Mas não ignoramos a opinião e as declarações públicas de muitas pessoas, desde o presidente do SICAD até à Ordem dos Médicos, passando por partidos políticos como o PS e o PCP, que mostraram disponibilidade para a discussão desde que não se discutisse tudo ao mesmo tempo. E é isso que faremos: discutiremos cada assunto com os seus argumentos próprios e nos seus tempos próprios.

 

O uso medicinal de canábis é recomendável em que situações concretas? Há um consenso científico, na comunidade médica, em relação a esta matéria?
Há dezenas de milhares de estudos e investigações sobre o assunto, principalmente desde que foi descoberto o sistema canabinóide endógeno. A evidência científica tem demonstrado que a utilização de canábis é eficaz no controlo da dor, na diminuição da náusea associada à quimioterapia, na estimulação do apetite ou no tratamento do glaucoma, por exemplo. E a investigação mais recente comprova o benefício desta planta em muitas outras doenças, como é o caso de doenças neuromusculares, doenças neurodegenerativas, epilepsia, síndrome de Dravet, distúrbios alimentares, VIH/Sida, fibromialgia, síndrome de Tourette, entre tantas outras.

 

Há diversos estudos que associam o consumo de canábis a um maior risco de contrair doenças mentais. Também há dados que apontam para efeitos nocivos da canábis no desenvolvimento do cérebro de adolescentes. O BE tem em consideração estes riscos quando defende publicamente o uso recreativo de canábis?
A legalização reduzirá o risco, o consumo desinformado e a manipulação genética e química de substâncias. Se a canábis for legalizada será possível controlar a qualidade da erva e do pólen, por exemplo. Se a canábis for legalizada, será possível controlar a potência do que é transacionado, o que se traduzirá em menores riscos para os utilizadores. A ilegalidade é que traz riscos de saúde pública.

 

Em Portugal, o consumo de canábis tem aumentado exponencialmente e já motiva o maior número de pedidos de tratamento de toxicodependência, superando a heroína ou a cocaína. A legalização da canábis não poderá agravar esta situação?
A canábis é tradicionalmente a substância ilegal mais consumida no mundo, mas se a compararmos com substâncias legais, o seu consumo não será superior ao do álcool. Pedidos de ajuda e de tratamento estão geralmente associados a policonsumos; ou seja, pessoas que consomem outras substâncias, legais ou ilegais, e que muitas vezes motivam o pedido de ajuda. Uma coisa é certa: a legalização permitirá uma maior e melhor informação e, a partir daí, permitirá um consumo mais informado e responsável por parte dos utilizadores. Isso poderá levar à redução de riscos, como os casos de policonsumos e misturas de substâncias.

 

João Goulão, director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), tem alertado para o aumento de casos de dependência de canábis. Mais, tem salientado que a canábis está a tornar-se mais potente e deixou de ser uma droga leve. Tratando-se de alguém com uma grande experiência no tratamento e acompanhamento de casos de toxicodependência, ao longo das últimas décadas, estes alertas não o preocupam?

Temos ouvido esses alertas com muita atenção. Muito do que hoje se encontra na rua são neocanabinóides ou preparações que sofreram manipulações químicas ou genéticas. Nesta realidade, sim, aquilo que hoje está a ser consumido é mais forte do que existia há uns anos atrás. Mas a verdade é que toda esta situação só é possível por causa da ilegalidade. A ilegalidade é o espaço e a oportunidade para introdução de substâncias sintéticas que mimetizam a canábis ou substâncias adulteradas que aumentam a potência do pólen ou da erva. Legalizar a canábis é controlar a qualidade do que é vendido e consumido, acabando-se com a oportunidade de manipulações que estão a aumentar o factor psicoativo da planta.

 

Na sua perspectiva, que efeitos (positivos ou negativos) é que a legalização da canábis teria ao nível da produção, comercialização, toxicodependência e criminalidade associada?
Vantagens seriam inúmeras. Em primeiro lugar, do ponto de vista medicinal, ao permitir a disponibilização de novos tratamentos e substâncias que são comprovadamente eficazes e seguros e que podem aliviar a dor, melhorar a qualidade de vida, combater inúmeros sintomas associados a várias doenças e ajudar na cura de muitas outras. Em segundo lugar, a legalização para os chamados fins recreativos – uma discussão para futuro – permitiria combater redes de tráfico, cortando-lhes financiamento. Permitiria o controlo da qualidade do que é consumido, reduzindo os riscos associados ao seu consumo. Permitiria um consumo mais informado e, desse ponto de vista, políticas preventivas mais eficazes. Estes são apenas alguns aspectos. Em alguns estados onde a canábis já foi legalizada têm-se notado outras vantagens: libertação de recursos do Estado para investigar e combater a verdadeira criminalidade ou aumento significativo das receitas fiscais, por exemplo.

 

 Já consumiu canábis, ou consome regularmente? É uma experiência que recomenda, ou deparou com efeitos nocivos?
Não se trata de discutir experiências pessoais ou de ter posições baseadas nessa subjetividade que são as nossas experiências de vida. Trata-se de defender uma medida, a legalização, que tem provado ser muito melhor, para a sociedade e para os indivíduos, do que a proibição. Não recomendo nem deixo de recomendar. Acredito que cada uma e cada um de nós deve ter a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, deve ter a informação adequada antes de fazer essa escolha e deve ter a garantia que essas opções comportam o mínimo risco possível. É isso que queremos com a legalização da canábis.

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