Em Fevereiro de 2015, Portugal tomou, após demoradas e entediantes negociações, uma medida de amplo significado que catapultou o país para a dianteira do tratamento da hepatite C a nível mundial. O programa de tratamento da hepatite C era sobretudo dirigido para os doentes registados nas listas dos hospitais, mas rapidamente se estendeu a toda a população infectada, independentemente da idade, condição social e estádio da doença.

A adesão ao programa, suportado por uma plataforma central de registo e dispensa da medicação e sem restrição ao acesso do melhor regime terapêutico da altura, excedeu as melhores expectativas. O empenho de todas as estruturas envolvidas no programa foi geral, de norte a sul do país, e os resultados não podiam ser mais encorajadores: taxas de cura da infecção da ordem dos 96%, com tratamentos orais de curta duração e com excelente perfil de segurança e tolerabilidade.

De acordo com um relatório preliminar do Infarmed, no primeiro ano de aplicação do programa já eram evidentes os ganhos em saúde, nomeadamente em vidas poupadas e redução do número de transplantes hepáticos.

Portugal era apresentado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como paradigma das boas práticas no que ao tratamento da hepatite C dizia respeito; e, provavelmente baseada no exemplo português, a OMS desenvolveu em 2016 uma estratégia mundial para diminuir o burden das hepatites B e C até 2030, tendo como metas: diagnóstico de 90% da população infectada; tratamento de 80% dos doentes diagnosticados e elegíveis para tratamento; redução em 90% do número de novas infecções; e redução em 65% da mortalidade relacionada com a doença hepática.

Volvidos quatro anos e mais de 23.000 doentes tratados, ou em vias de tratamento, resta em Portugal o acesso universal ao tratamento, o que é manifestamente insuficiente para atingir os objectivos da OMS para 2030. Para além do acesso à medicação, a cascata de cuidados implica, também, rastreio e diagnóstico dos doentes virémicos e ligação aos cuidados de saúde. Seguindo estes princípios, a maioria dos países europeus, e muitos outros países por todo o mundo, estão a implementar programas de eliminação da hepatite C.

O Programa Nacional para as Hepatites Víricas de 2017 reflecte a adopção das orientações programáticas do plano de acção da OMS Europa para as hepatites víricas. Contudo, na ausência de um plano concreto, os dados mais recentes indicam que o País não irá alcançar essa meta em 2030. Pior do que isso, corre o risco de perder os resultados conseguidos até agora.

O número de novos casos por ano, isto é, a incidência da infecção, está estimada em Portugal ser, presentemente, de cerca de 500 novas infecções por ano, mas com o decorrer do tempo o crescimento será exponencial.

A história natural da hepatite C crónica caracteriza-se por um longo período assintomático, que pode exceder os 30 anos. Os doentes que desenvolvem cirrose estão em risco de desenvolver complicações (ascite e hemorragias) e cancro do fígado. Nesta fase avançada da doença, a morte é uma consequência inevitável, a menos que seja realizado um transplante hepático.

De acordo com o CDC dos EUA, o vírus da hepatite C é responsável por 38% e 44% dos casos de cirrose e carcinoma hepatocelular, respectivamente, nos países ocidentais. Os doentes com cirrose associada ao VHC representam a maior fracção de doentes com cirrose a serem submetidos a transplantação: cerca de 40% nos EUA, 25%, em média, na Europa, e aproximadamente 20% em Portugal.

Com a nova geração de fármacos, o tratamento da hepatite C, qualquer que seja o tipo (genótipo) de vírus e estádio da doença, é muito simples e extraordinariamente eficaz: um comprimido por dia, durante 8-12 semanas, com uma taxa de cura de cerca de 97%.

Os regimes pangenotípicos mais recentes permitem uma abordagem simplificada do diagnóstico e monitorização, pelo que são actualmente os regimes preferenciais na maioria dos países da UE. É consensual entre os peritos que a eliminação da hepatite C é possível desde que se actue especificamente nos grupos de risco (microeliminação) e na população em geral (macroeliminação).

Na primeira, os cuidados médicos, incluindo a terapêutica, serão desburocratizados e realizados no local de assistência às comunidades vulneráveis. A macroeliminação, por outro lado, envolverá um rastreio de determinados grupos etários e ocorrerá nos centros de saúde em ligação com o hospital.

Com uma estratégia bem definida e um cronograma bem estabelecido, é possível implementar em Portugal um plano de eliminação da hepatite C para os cerca de 50.000 doentes que se pensa ainda existirem, e cumprir as metas da OMS.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.