Como tudo o que tem impactos sobre os aspectos da nossa vida em comum, o politicamente correcto tem de ser discutível. Só que o que vai sendo sinal do nosso tempo não é uma discussão, mas uma tentativa de desqualificação sumária, acusação de puritanismo e moralismo, habitualmente montada na enumeração de uma sequências de exemplos de censura que, afinal, ou não estão expostos devidamente, ou até estão, justificando  que se fale de censura, mas são casos escassíssimos, bem denunciados e criticados.

Por alguma razão, a mobilização intelectual contra o politicamente correcto em Portugal não consegue apontar mais do que um par de exemplos que se tenham passado em território nacional. E indo aos exemplos no resto do mundo, sobretudo no contexto dos Estados Unidos e do Reino Unido, a discussão não consegue fugir da enumeração de casos, todos sumariamente interpretados da mesma maneira e, claro, sem nenhuma contextualização do género: em mil casos, um corre mal.

Sem este cuidado de evitar tomar sumariamente como exemplos o que devem ser casos analisados e sem os avaliar na proporção devida com uma prática mais ou menos frequente e sem queixas, não estaremos a discutir, mas a lutar com palavras.

Pois bem, a proposta deste texto é discutir, e não lutar com palavras, sobre o politicamente correcto. Começo com um bom exemplo ilustrativo dessa prática, mas que é também um bom exemplo de equívocos de compreensões sumárias. Depois do exemplo, passarei à discussão de definições e, finalmente, a um possível contributo para pôr todo este importante debate em bases mais razoáveis.

Toda a gente sabe que o famoso cowboy Lucky Luke aparece hoje nos seus álbuns com uma palhinha e não um cigarro na boca. O que toda a gente não sabe é que essa foi uma decisão do próprio Morris. Em 1983, por pressão dos editores norte-americanos Morris acedeu a colocar (um tanto contrafeito) a palhinha na boca do Lucky Luke. Exigiu algum esforço de adaptação, porque muito da personalidade e carácter de Lucky Luke se mostrava naquela lentidão, apesar de todos os perigos, com que enrolava um cigarro sem mínima perda de calma.

Não há nisto puritanismo, há sim sensibilidade às preocupações sociais, além de interesses comerciais com maximização das melhores oportunidades. Mas já é puritanismo e moralismo a maneira unilateral e sumária como se olha hoje para a substituição do cigarro pela palhinha e para a pressão para que assim sucedesse e logo se levanta o dedo acusador: é censura, é adulteração da obra, e por motivos puritanos. Até haverá casos em que isso acontece, e talvez mais frequentes nos últimos tempos, mas aquilo a que se convencionou chamar politicamente correcto é só isto que a história do “quit smoking” de Lucky Luke exempifica. A decisão valeu a Morris, em 1988, um prémio instituído pela Organização Mundial de Saúde.

Problemas de definições

Passo da ilustração às definições. De acordo com a versão online do Dicionário de Cambridge, o politicamente correcto é a atitude de quem “acredita que a linguagem e as acções que possam ser ofensivas para outros, especialmente aquelas relacionadas com sexo e raça, devem ser evitadas”. Por seu turno, na versão inglesa da Wikipedia lê-se que “political correctness” é “um termo usado para descrever linguagem, políticas públicas ou medidas que são concebidas para evitar ofensa ou desvantagem para membros de grupos particulares em sociedade”.

Há qualquer coisa importante nesta noção, que deve ser guardada como um bem eticamente recomendável. Já lá iremos. Contudo, antes disso: ambas as definições que acabo de dar são demasiado amplas, acabando por promover, junto com princípios e valores de inclusão fundamentais, limitações e constrangimentos a outros princípios e valores tão fundamentais quanto aqueles.

Assinalo três conflitos que estas definições não deviam permitir. Primeiro, o direito a ofender, entendido genericamente, é parte integrante da liberdade de expressão. Não pode ser genericamente excluído. Teríamos de prescindir do direito à sátira, o que não é aceitável. Segundo, se assumíssemos que a linguagem deveria ser extirpada de todo o potencial de ofender, teríamos de conformá-la a tantos constrangimentos que, no fim, poderíamos estar a fazer colapsar o próprio valor da linguagem como lugar por excelência da experiência do humano. Pouca ou nenhuma literatura subsistiria. Todas as palavras do nosso dicionário têm uma história, que é muito provavelmente também uma história de usos ofensivos.

Substituir, por isso, cada nome, cada adjectivo por descrições – por exemplo, substituindo a palavra “cego” por “pessoa portadora de incapacidade visual” – é um erro. A memória das palavras é a sua vida semântica. Substituí-las por descrições é substituir a linguagem viva por um frankenstein semântico, ou pior ainda, um frankenstein sem vida mas que deve servir, ainda assim, a tarefa da comunicação.

Terceiro, excluir palavras, imagens e comportamentos porque temos deles uma memória de discriminação é outro erro. Supor que os significantes ficam amarrados aos seus significados passados para todo o sempre é recusar a capacidade tão humanamente necessária de os ressignificar e, igualmente importante, de os ressignificar com a plena memória dos seus significados passados. Recusarmo-nos a capacidade de ressignificar é alimentar uma perspectiva menorizadora.

Mas dito isto, como pode ainda encontrar-se algum bem eticamente recomendável no politicamente correcto? É simples, definindo-o de forma mais estrita. De duas maneiras, que vou tentar expor o melhor possível.

Em primeiro lugar, estabelecendo em que condições o direito a ofender deve estar limitado. Deve ser uma auto-limitação do Estado e de todos aqueles que falam ou agem em seu nome, devendo ser regulada deontologicamente. Por exemplo deputados, trabalhadores em funções públicas, professores e os seus materiais de ensino. E deve ainda, como comportamento a incentivar, constituir recomendação ética em todos os contextos de relações de poder assimétricas no espaço público, mesmo se não mediados por poderes públicos. Por exemplo, jornalistas, opinadores e comentadores nos jornais, em maior medida, mas também cada um de nós na medida em que todos de algum modo somos parte e somos responsáveis pelo espaço público.

Em segundo lugar, estabelecendo políticas públicas de valorização e inclusão de grupos sociais, minorias, desde logo étnicas, ou escolhas cujo direito está constitucionalmente consagrado (orientação espiritual, sexual), que sentem, ainda hoje, o peso de uma história de discriminação, desqualificação, quando não mesmo de sub-humanização. Mas, sob duas restrições suplementares: sem com isso autorizar formas de exclusão e, além disso, mantendo essas políticas num quadro de transitoriedade, não essencializando politicamente grupos, minorias, escolhas. O que justifica a acção diferenciada não são os grupos mas o reconhecimento da vulnerabilidade politicamente determinada a que foram sujeitados.

Vários exemplos. Políticas de quotas para mulheres justificam-se para corrigir um desequilíbrio de oportunidades social e politicamente determinado. Aliás, no mesmo sentido, falta em Portugal uma política de quotas para afrodescendentes. Políticas de maior atenção às expressões culturais de minorias, evitando discriminações subentendidas apenas porque uma tradição cultural impôs até hoje o seu cânone literário, musical, artístico. Políticas de lugar de fala que façam falar, como sujeitos plenamente autónomos, aqueles que são o objecto dessa fala.

Mas todos estes exemplos devem ser exemplos de políticas transitórias e que não negoceiam com a exclusão para incluir. O lugar de fala não pode mandar calar ninguém. A cultura social e politicamente despromovida no passado e por essa razão promovida pelo politicamente correcto não pode excluir a cultura que teve no passado vantagens. Corrigir não é reparar. A primeira pode ser uma categoria política, a segunda só pode ser moral. As políticas de quotas não devem ser entendidas como políticas com validade perpétua. Se não corrigem, há que procurar outro modo de o fazer. De outro modo, essencializa-se a desigualdade que se pretendia superar.

Problemas de designação

Mas, aceitar que o politicamente correcto é, ou deve ser, esta versão restrita não basta. Subsiste ainda um outro problema: a sua designação é insanavelmente ambivalente. Pode querer dizer, como o foi para publicitários, apresentar algo, não importa se acreditando ou não no que se está a fazer, de maneira politicamente correcta a diversos públicos para dessa forma ter mais retorno. Pode querer dizer, como realmente aconteceu no Partido Comunista Soviético, apoiar ou reconhecer algo em que pouco ou nada se acreditava, por exemplo, considerando politicamente correcta a obra de Picasso por mero interesse tático. Pode querer dizer, como aconteceu com os republicanos conservadores, uma acusação àqueles hippies e pacifistas “sem maneiras” que se manifestavam em protesto contra a guerra do Vietname nos anos 60 do século passado.

Nenhum destes três sentidos da expressão é bom e por isso todos eles merecem uma resposta politicamente incorrecta — politicamente incorrecta, aqui, entendida como não hipócrita e não tuteladora de consciências.

Contudo, isto que devia ser claro não é. Por duas razões. Primeiro, porque todos estes sentidos indesejáveis de “politicamente correcto” acabam por estar presentes na crítica ao sentido defensável da expressão, mesmo quando empregado e praticado de forma restrita. E aí, falar de hipocrisia e de tutela de consciências é apenas um pretexto para manter e ampliar inaceitavelmente os poderes de quem tem poder. Essas críticas injustas, e na verdade mais puritanas do que o puritanismo que querem denunciar, até podem admitir que o melhor sentido da expressão de facto existe, mas que só nos princípios, para logo concluir que de boas intenções está o inferno cheio.

E, em segundo lugar, porque, muito ironicamente, muitos dos paladinos da crítica ao politicamente correcto são experientes no uso das más noções de politicamente correcto. Por exemplo, políticos que não são mais do que um produto de comunicação política direccionado a públicos-alvo. Detentores de poder, em posição assimétrica, que se dispõem a apontar a incorrecção política da falta de urbanidade, a mesma “falta de maneiras” que mencionei acima no contexto norte-americano.

À luz destas ambivalências, depressa se percebe que afinal, uma deputada portuguesa defensora do politicamente correcto pode perder um partido, acima de tudo, à luz da evidência tornada pública, por ter sido politicamente incorrecta num sentido pouco ou nada criticável e que um deputado de extrema-direita que agiu de forma muito censuravelmente incorrecta do ponto de vista político é, na verdade, um exemplo acabado de todos os truques e manhas da correcção política.

Para evitar mais confusões com as palavras, proponho que se rebaptize o politicamente correcto recorrendo à velha palavra “ética”. Do que se trata é de assumir, dentro do campo da ética pública, um domínio particular: a ética das relações assimétricas. E defini-la estritamente assim: auto-limitação da linguagem e da acção, em condições de relação assimétrica, bem como políticas públicas capacitadoras, ambas com o objectivo único de extinguir desigualdade de oportunidades determinada por práticas discriminatórias ou delas ainda efeito.

Quem se melindra na sociedade do melindre?

Esta preocupação inclusiva a que devíamos chamar ética não é de hoje, bebe numa cultura política de cidadania atenta às necessidades da sociedade, e está muito reflectida no cuidado das instituições democráticas de que dispomos. Por que, então, se tornou hoje política e socialmente tão contestada? Sem prejuízo de outras, há duas razões que devem ser tidas em conta.

Uma envolve a responsabilidade de quem promove políticas de inclusão de minorias, mas esquece ou menoriza a exclusão e a opressão das maiorias, sobretudo em contextos de crise económica ou depressão social. Não se trata de subordinar desigualdades de diferente recorte à desigualdade de classe, como alguns dizem sem prova disso, mas de nunca subestimar os impactos desta. De outro modo, a defesa da inclusão das minorias perde o apoio imprescindível das maiorias e acaba por suscitar nestas a vontade de confrontação. Não há qualquer bondade em lembrar a homens brancos de classe média sem horizonte de oportunidades para si e para os seus filhos que beneficiam de um privilégio histórico. E que por isso devem resignar-se. Talvez parte da zanga social nos Estados Unidos tenha que ver com isto.

A outra razão está a montante destas escolhas e trata-se de reconhecer que, nos últimos anos, sobretudo desde a última década, o espaço público se adulterou profundamente. Transferido em grande medida para as redes sociais, onde o acesso gratuito garante adesões em massa e uma impressão falsa de praça pública, o espaço público acelerou e tornou-se, também por esse motivo, cada vez mais melindroso e reactivo e cada vez menos reflexivo.

Esta condição melindrável da sociedade talvez explique um alegado aumento do número de casos persecutórios justificados no politicamente correto. E ainda como, por receio do melindre e de retaliações, instituições passam defensivamente a abusar de “trigger warnings”, não porque façam sentido, baseados numa clara convicção de potencial ofensivo ou traumático no que se quer expor, mas por medo de uma reacção que, no limite, está sempre para lá do alcance da previsão de cada um.

E o mesmo melindre exagerado está também na base de como depressa, aos olhos do crítico do politicamente correcto, qualquer crítica é imediatamente lida como censura. Por exemplo, nenhum humorista a intervir no espaço público tem de sentir diminuída a sua capacidade de satirizar, com a dose de ofensa que isso possa implicar, mas de modo nenhum pode, por isso, achar que não vai ser criticado e, caso o assunto seja suficientemente grave, até boicotado. Censura e crítica não são a mesma coisa.

É bom que se entenda que alguém ver os seus direitos limitados é uma limitação de oportunidades. Mas o inverso não é verdadeiro e, por desagradável que seja, pode ser justo. Pior ainda, pode até ser injusto, mas reconhecidamente irreparável.

Numa sociedade do melindre, incapaz de confiar, o certo é que a acção do politicamente correcto, ou aquilo que prefiro chamar uma ética das relações assimétricas, está condenada. Mas, o que vamos preferir: desistir do comum e entregar-nos à doença da desconfiança e do melindre ou ir ao encontro das bases do comum? Se queremos ir por aqui, então não pode fazer sentido que admitamos como suficiente alguém sentir-se ofendido para que o tenha sido, e não pode fazer sentido que admitamos como suficiente alguém não ter tido a intenção de ofender para que não tenha sido ofensivo.

Abaixo do plano dos crimes mas acima da mera ofensa subjectiva, precisamos que uma objectividade da ofensa resulte da nossa capacidade, enquanto sociedade, de acordarmos as bases do nosso respeito comum. É só disso que se trata. E nisso bem pode estar em causa a possibilidade de as sociedades prosseguirem como queremos, plurais e capazes de discutir.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.