Desolador termos acordado há dias para uma guerra. Não havia outra maneira de celebrar o aparente fim da pandemia e de constituir uma nova preocupação global? Em vez de nos prepararmos para um futuro ameaçado de tantas outras maneiras, o que nos exigiria pararmos com a ânsia da sobrevivência, reincidimos na pior forma de sobrevivência, em que estados políticos se autorizam a mobilizar os seus para vergar outros sob a ameaça da força, das armas, da morte, condenando populações a sobreviver-se a outras.

Devia ser um absoluto para o nosso tempo que o valor da vida humana se tornou incompatível com a guerra ofensiva. Já ninguém neste mundo tem filhos a pensar que eles podem vir a ser mandados por um qualquer governo para uma guerra e morrer. Não há ressentimento nem política que justifique continuá-la pelos meios da guerra. É a inteligência e o amor postos ao serviço da estupidez. Deve chocar-nos que se persista em sobrevivermo-nos a ponto de se conceber a situação de filhos não sobreviverem aos pais. Nesta loucura, perdemos de vista o mundo que precisamos de salvar.

E é um tiro mortal no coração da democracia como princípio político dos Estados. O general e teórico da guerra Carl von Clausewitz definiu cruamente – como deve ser – a guerra como um acto de violência física destinado a compelir o inimigo a fazer a nossa vontade. Mas é precisamente esse o meio de persuasão de que a democracia se abstém. A vontade em democracia é formada livremente e não por intimidação e violência, iminente ou efectiva. Todos os compromissos que contornem esta exclusão mútua entre democracia e guerra ofensiva são cinismo encapotado, esse “realismo” que nos tem corroído a prática de democracias fortes desde há muito.

Digam-me que confundo ingenuamente moral, guerra e política. Pois, mas não é confusão, é o osso da democracia. A racionalidade política não pode tornar-nos meios ao dispor da guerra ofensiva porque em democracia cada cidadão é um fim em si mesmo. Nenhuma vitória política sobre a vontade de outros arrancada pela guerra merece respeito político ou moral.

Em democracia, a guerra deixou de ser, ao contrário da espirituosa definição de Clausewitz, “a política continuada por outros meios”. É passado histórico o tempo em que se concebia o Estado como o leviatão que podia dispor da vida dos seus. Esse delírio de poder absoluto – “make great again” – tornou-se o lado obsceno da existência pública democrática. E num mundo global de crescente interdependência não é aceitável que a forma democrática seja repelida das relações internacionais. A pandemia deveria ter ensinado alguma coisa aos tiranetes.

Guerra e Paz”, de Leo Tolstoi, começa mais ou menos assim: «No dia 12 de Junho, as forças da Europa Ocidental atravessaram as fronteiras da Rússia, e começou a guerra – ou seja, um acontecimento contrário à razão humana e a toda a natureza humana.» Pois bem, 210 anos depois, poderíamos parafrasear outro início: «No dia 24 de Fevereiro, as forças sob comando de Putin atravessaram as fronteiras entre a Rússia e a Ucrânia, e começou a guerra – ou seja, um acontecimento contrário à razão humana e a toda a natureza humana.»

Não sei o que seja a natureza humana, mas sabemos alguns factos da história que levamos. Putin não é um novo Hitler, mas traz a mesma desmesura bélica de Napoleão que Tolstoi imortalizou e, quero crer, o mesmo triste fim. Fala-se de imensas colunas militares com 60 km a entrar na Ucrânia a caminho de Kiev, como Tolstoi falava do maciço exército nacional de Napoleão distendido por longas “verstas”. Só não se fala da mais que reiterada evidência histórica de que só transitoriamente, e a custo de muitas vidas humanas, se subjuga um povo pela força das armas.

E nós? Um povo civil sob bombardeio exige-nos pressupostos mínimos de seriedade que não vejo respeitados na opinião publicada. Envergonha-me intelectualmente ler que conformarmo-nos a esta guerra é aceitável porque, sendo inaceitável, houve já outras guerras inaceitáveis que foram aceites por quem exercia o poder, apesar do nosso protesto.

A coerência devia determinar o contrário, devia até exigir que connosco mesmo se seja mais exigente do que com os “adversários”. Envergonha-me que se diga “não em meu nome” ao envio de armas defensivas, como se outra coisa pudesse estar em causa do que tentar impedir que um povo civil morra indefeso se não quiser render-se à ameaça às suas vidas. Quem se acha no direito de transigir com esta guerra ofensiva à margem de tudo o que são os valores da paz e da vontade livre dos povos derrota-se perante a coerência daquilo contra que se devia bater.

Sou claro: a esquerda anticapitalista que fala assim não me representa. O realismo do “mal menor” a procurar insensibilizar-nos diante da violência, ou o recurso à evocação do mal feito no passado pela outra parte para tornar “neutro” o mal a que se assiste agora, coisa que a educação moral nem às crianças permite sem reparo, enfim, a hipocrisia que só releva sensibilidade ao sofrimento de uns em detrimento de outros, tudo isso é cívica e intelectualmente ultrajante, corrói as bases da legitimidade do discurso emancipatório e igualitário, e denota muito fraca fibra democrática da parte de quem apregoa. Atreverem-se a mencionar louros passados não é boa ideia pois só extrema responsabilidades descuradas.

Melhor foi a decisão do chanceler Olaf Scholz de envio de armas defensivas (antitanque e antiaérea) para apoio à defesa militar da Ucrânia. Há uma responsabilidade que não pode ser contornada, que tem de ser exclusivamente europeia. Há um protagonismo que não pode ficar calado diante da invasão das cidades da Ucrânia, das ameaças à Finlândia e à Suécia, da espécie de anexação que já sucedeu com a Bielorrússia. Scholz virou uma página histórica. Não o ouço sem receios, mas percebo que Putin abusa dos fantasmas europeus, os mesmos que a NATO sob comando norte-americano explora, os mesmos que fazem da ONU uma monumental incapacidade. Putin não atenta contra essa “ordem internacional”. Na verdade, ele explora-a e vive dela como mais ninguém. É preciso uma ordem internacional realmente centrada nos valores da democracia e na sua categórica incompatibilidade com os da guerra ofensiva e a sua pretensão imperialista ao estado de poder absoluto.

Em meu nome, por favor. Que o Governo democrático de Portugal não contribua com forças armadas ou apoios de outra ordem para nenhuma guerra ofensiva. Se aconteceu no passado, assumamos que não deveria ter acontecido, e não que então vale tudo. Enquanto esta guerra prossegue, que a democracia portuguesa esteja firme do lado das vítimas, primeiro as ucranianas, sob a ameaça de morte, mas também as russas, sociedade subjugada por uma tirania.

O povo ucraniano precisa de armas defensivas, as pessoas que vivem na Ucrânia (minorias e estrangeiros escrupulosamente incluídos) da possibilidade de acolhimento de toda a Europa. E as sanções económicas em que participemos não devem atingir a economia da Rússia, pelo menos no que isso signifique atingir duramente o seu povo. É os oligarcas plutocratas daquele regime que devem ser visados, todos os seus interesses, a ponto de não lhes restar senão os rublos que trazem nas carteiras de trazer por casa. Pois, verdadeiramente, são eles quem mantém o autocrata belicista que governa a Rússia. E esperemos que façam a sua parte interesseira no derrube de Putin ou, ao menos, no apoio ao povo russo.

É preciso toda a firmeza que torne possível estar à altura de poder, com coerência, sem torções, dizer simultaneamente: Somos Ucrânia, somos Rússia, somos Europa, somos Mundo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.