Consideremos a seguinte sequência de eventos: uma mulher (ou um homem) sai de casa de manhã para mais uma jornada de trabalho. Mais um dia longe de casa e ao largo de outras tantas pessoas que poderiam cruzar-se no seu caminho.

É isso que fazemos quase todos os dias, interagimos com terceiros, com graus distintos de intimidade. Família, amigos, colegas de trabalho, motoristas/condutores de transportes públicos, prestadores de serviços dos mais variados tipos, entre os quais uma série de gente que atende ao balcão ou similar. Divago.

Consideremos a seguinte sequência: Mariana (nome fictício) sai de casa, entra no seu automóvel e abandona a periferia de Lisboa, ou do Porto, ou de outra grande cidade portuguesa, e dirige-se ao seu local de trabalho. Para lá chegar, faz um pequeno troço de autoestrada, mas nem sequer se detém na portagem porque é utilizadora da Via Verde. E não o sendo, poderá sempre fazer o pagamento naqueles postos automáticos nos quais se insere o talão respetivo e a soma devida.

Mariana prossegue viagem. O dispositivo de Via Verde – agora parece cada vez mais plausível que o tenha – permite-lhe aceder ao parque de estacionamento do costume sem ter de verbalizar um “bom dia”, um “como vai?”, um “então e esse Sporting?”. Na pausa do trabalho, pela hora de almoço, dirige-se ao self-service do costume, deslizando o tabuleiro, servindo-se do seu pacote de papel no qual encontra os talheres arranhados de tanta lavagem e o guardanapo. Só no final do percurso dessa linha de montagem alimentar, capaz de fazer corar de inveja um qualquer Charles Chaplin, só mesmo nos derradeiros centímetros dessa linha, interage com alguém. Faz o pagamento recorrendo à tecnologia contactless (está tudo no nome) e toma o seu lugar.

Durante o período da manhã imediatamente anterior e o período da tarde imediatamente posterior, Mariana faz uma pausa para café, mas é dona do seu destino – leia-se, não dá satisfações, quando escolhe um queque em vez de uma peça de fruta – desde o preciso momento em que a administração da empresa fechou a zona do bar e instalou vending machines por todo o edifício.

À saída de mais uma jornada de labuta, Mariana vai atestar ao posto de combustível e paga a conta na bomba, sem precisar de ir à zona de loja da gasolineira. E antes de regressar a casa, passa pelo supermercado para abastecer-se de meia-dúzia de produtos que sempre vão faltando durante a semana, nos intervalos das compras grandes do mês. Lá, leva o cesto até às caixas automáticas, pesa os seus próprios vegetais, ajuda a máquina a ler códigos de barras, guarda tudo no saco muito bem dobradinho que vai consigo para todo o lado, dentro da mala de cabedal que há tempos mandou vir pela internet.

Sem contar com o olhar reprovador de que foi alvo por parte da pessoa que lhe cobrou o valor do almoço, “olha-me esta, armada em magra, a comer uma baba de camelo”, Mariana fez a sua vida de consumidora/utente sem trocar uma palavra. Sem um contacto humano.

É bem possível que daqui em diante esta passe a ser a regra, uma vez que cada vez mais nos empurram para uma pretensa autonomia, que no fundo está muito ligada à busca da sacrossanta produtividade e da otimização de recursos. Até as grandes cadeias multinacionais apelam a que recolhamos os tabuleiros nos seus espaços, por forma a poderem manter-se competitivos e campeões dos preços baixos. Dizem eles. Repare, caro leitor, até nos convenceram de que é normal montarmos os nossos próprios móveis, depois de os termos empilhado de forma mais ou menos improvisada nos nossos automóveis utilitários (em Portugal há poucos SUV).

Mas ainda não entrámos na totalidade nesta utopia da despersonalização. Para já, vamos vivendo maioritariamente de outro modo. Um modo que implica relacionamento interpessoal e que não passa sem os chamados essenciais, adjetivo que tanto se generalizou no momento em que fomos apresentados à pandemia que o coronavírus entendeu oferecer-nos. Sem passar por caixas, sem pagamentos obrigatórios. Sem cartões nem complicações. Eis um vírus que ameaça alterar o nosso modo de vida, ma non troppo.

Por esta altura, já percebemos que muitas coisas se manterão iguais. Já percebemos que a vida da Mariana voltará ao business as usual e que os essenciais continuarão a trabalhar por turnos, a ser mal pagos, a passar ao largo das ações de formação e de capacitação no contexto de trabalho. Estamos a falar de pessoas que, mesmo fora do sector da saúde, estiveram na linha da frente da pandemia. Atendendo ao público, fazendo funcionar supermercados, farmácias, lojas de conveniência, mercearias, bilheteiras em terminais de transportes. Vivendo a sua vida de todos os dias, mas agora em risco agravado.

Entretanto, com o levantamento das restrições, o business será cada vez mais usual e as lojas de bairro ou de centro comercial, os cafés e os restaurantes, as salas de espetáculo, os bancos e seguradoras, os balcões dos serviços públicos e os postos de atendimento dos mais variados tipos voltarão (já voltaram?) ao normal. Isso é sinónimo de boas notícias: a economia precisa de funcionar, o PIB de engordar, o acionista precisa de comemorar. E de expandir a sua rede de estabelecimentos, já agora.

Em Portugal, tudo isto é mais decisivo no chamado sector dos serviços. A minha formação e a minha experiência profissional – o meu ponto de vista neste contexto, até – não me permitem grandes elucubrações sobre a já referida produtividade do país ou sobre as razões que levaram à criação de um ambiente favorável à multiplicação de trabalhadores do comércio e dos serviços, por oposição a uma lógica de produção direta de bens, por via da agricultura ou da indústria.

Escrevi um “Retrato” para a Fundação Francisco Manuel dos Santos utilizando uma abordagem impressionista, baseada na observação de uma amostra reduzida. Contei histórias, ou melhor, contaram-me histórias, passadas entretanto ao papel. E não fui à procura de explicações passíveis de serem colocadas em células Excel, mas sim de estados de alma, aspirações, até de irritações de gente que tem feito a sua vida à roda do terceiro sector.

O que é facto é que o conceito de “serviços” conheceu uma expansão de vulto ao longo dos últimos anos, fruto do crescimento exponencial das necessidades de consumo, como se diz no Marketing, também elas (as necessidades) devedoras da revolução tecnológica em curso.

Apesar do exemplo que escolhi à boleia da ficcional Mariana, hoje continuamos a precisar de quem nos venda roupas, bilhetes para espetáculos, sapatilhas de corrida e perfumes, livros e cafés sem princípio; só que entretanto também começámos a precisar de contar com gente que nos explique como é que se configura o iMac, assistentes que nos façam assinar remotamente o contrato com a operadora de telecomunicações, atendedores especializados que nos ajudem a perceber a melhor relação qualidade/preço das cartas de vinho que vêm aprimorando a oferta nos restaurantes. A expansão do Universo não para.

Coube-me então contar histórias e apresentar alguns dados que ajudam a ilustrar a forma como o sector terciário é essencial à economia portuguesa. Aqui vão alguns números, já que estamos no Jornal Económico: as estatísticas relativas à população empregada no ano de 2018 (números pesquisados aquando da redação do “Retrato”) dão conta de uma segmentação por atividade económica que vinca o peso deste sector.

Segundo os dados apurados, cerca de sete em cada 10 trabalhadores exercia a sua atividade nos serviços, fator a que não será alheio o crescimento sustentado do turismo no nosso país – se olharmos os dados da hotelaria, Portugal tinha 6,7% da população empregada nessa área, contra 4,9% da União Europeia a 28 (os efeitos na pandemia neste segmento que apresentava um crescimento fulgurante ainda estão longe de poder ser medidos).

O que é facto é que os sectores primário e secundário têm perdido peso e protagonismo, em favor do sector dos serviços, que cresceu muito nas últimas duas décadas – no ano 2000, representava 52% do emprego, contra os 69% de há três anos. Normal: vivemos num país que elevou o Centro Comercial a património nacional de referência.

As cidades cuidavam de ter as suas praças, rossios e adros; hoje em dia cuidam de ter o seu espaço comercial de larga escala, que emula todos os outros que se encontram espalhados pelo território nacional. As mesmas marcas, as mesmas cadeias de lojas, os mesmos supermercados. Nesse mesmo 2018, os centros comerciais portugueses faturaram 10.000 milhões de euros, mais 4,7% do que no ano anterior. Isto apesar do crescimento acelerado das compras feitas através da internet (olá, Mariana), que poderão condenar em parte o modelo de comércio e de negócio a que estamos habituados.

Dessa alteração de hábitos de consumo decorrem mudanças como o aumento das áreas de restauração nos shoppings ou a criação de mais espaços de lazer, vocacionados para a realização de eventos de cariz cultural, como exposições ou espetáculos.

Num tempo de incertezas, tudo conta na hora de puxar dos galões do comércio: 10.000 milhões de euros é um valor equivalente, mais coisa menos coisa, à despesa anual com todo o Serviço Nacional de Saúde. Ora, para alimentar este ecossistema, são necessários muitos trabalhadores, nem sempre qualificados. E quase nunca satisfeitos. Apesar do fulgor do sector dos serviços, a lógica das retribuições e das condições de trabalho mimetiza as dos outros sectores, revelando os problemas de todo um país. O que se nota nas competências mancas – de empregados e empregadores –, nos parcos salários, na produtividade muito rente ao chão.

Pelo meio, vão-se consumindo vidas e ambições, algumas delas pertencentes à tão propalada geração mais qualificada da história. Como escrevi ali para cima, não tenho qualquer competência para propor soluções, mas do ponto de vista de quem conta os outros, tenho um conselho a dar: comecemos pela empatia, comecemos por olhar com olhos de ver aqueles que nos servem. Compete-nos a nós evitarmos uma sociedade contactless.

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Este ensaio resulta da parceria entre o Jornal Económico e a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Pedro Vieira assina este texto na qualidade de autor do “Retrato” publicado pela Fundação, intitulado “Em que posso ser útil?”.