Após anos e anos ligada a uma profissão que despertou em mim a sensibilidade para a literatura e o poder das palavras, não pude ficar indiferente ao discurso do Papa Francisco por ocasião da sua recente visita ao campo de refugiados Mavrovouni, na ilha grega de Lesbos – um dos locais do mundo onde a crise dos refugiados mais tem sido alvo de instrumentalização política.

O Papa já visitara a ilha há cinco anos e chamou novamente a atenção para a crueza que os refugiados e migrantes enfrentam, realçando a vergonha que deveríamos sentir pelo facto de a paralisia política apenas tem agravar a situação de desespero em que se encontram. Sem poupar críticas, confrontou o problema e apelou a todos que ultrapassem “a paralisia do medo, a indiferença que mata, o desprezo cínico que, sem escrúpulos, condena os marginalizados à morte.”

São especialmente tocantes as palavras que usa em relação ao Mediterrâneo, quando diz, “não permitamos que o nosso mar (mare nostrum) se transforme num mar desolado de morte (mare mortuum)”, apelando a que se trave este “naufrágio de civilização”.

Não sou indiferente à oratória religiosa que tão bem usa o dom da eloquência para tocar profundamente o coração dos crentes. Mas mesmo para aqueles que não possuem em si a fé para comungar dos ideais e rituais da Igreja Católica – ou de qualquer outra religião – é uma oratória universal que, por vezes, consegue ir muito mais longe do que quaisquer lugares-comuns do discurso político. E a verdade é que o nosso discurso político, mesmo com as devidas ressalvas, tem sido miserável e condenado ao vazio e ao politicamente correto. São palavras ocas que não se refletem em ações decisivas.

E no dia de hoje, 10 de dezembro, data em que se celebra o Dia Internacional dos Direitos Humanos, dia em que a Assembleia das Nações Unidas adotou a Carta Universal dos Direitos Humanos em 1948, somos confrontados, mais do que nunca, com este buraco negro que engole a política e a sociedade civil, deixando-nos entregues a uma apatia geral que corrói as nossas crenças, o nosso otimismo e esperança.

Nesta época em que tantos desejam o regresso dos muros, arames farpados e betão para afastar aqueles que consideram o “opróbrio da terra”, muito se esquecem que tudo está interligado. Assim como grande parte da solução para a pandemia passa por uma resposta global, e não nacionalista e isolacionista, a questão dos refugiados ultrapassa as fronteiras de países em guerra, em lugares distantes onde a democracia é uma ilusão.

Haverá cada vez mais refugiados pelas mais variadas razões e, nas próximas décadas, milhões serão forçados a abandonar o território onde vivem por força de alterações climáticas. Para onde irão?

Esta apatia que nos tem vindo massivamente a dominar é como um veneno que se entranhou em tantos de nós e, por essa razão, talvez já não estejamos muito distantes dos cenários apocalípticos em que habitamos a terra como mortos-vivos a vaguear, sem propósito, tentando apenas sobreviver.

Uma apatia que se tornou monstruosa, como os monstros da Antiguidade combatidos por heróis lendários. Já não somos mais o reflexo dessas figuras humanas épicas que ilustravam o melhor da Humanidade. A atravessámos o ‘espelho’ e iniciámos o processo de nos convertermos nesse monstro hediondo que se esconde no coração das trevas.