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“Estado está a meter-se em coisas em que não tem de se meter” como o incentivo de IRC

Rogério Fernandes Ferreira dá nota positiva ao OE2023, mas não esconde as críticas. Mudanças previstas no IRS são demasiado complexas, diz. E não cabe ao Estado incentivar subidas salariais, alerta, referindo-se ao benefício no IRC.
25 Dezembro 2022, 14h30

O ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Rogério Fernandes Ferreira critica a complexidade das mudanças no IRS previstas no Orçamento do Estado para 2023 (OE2023) e avisa que não é nessa sede que se fazem reformas. Antevê, por outro lado, vários problemas ligados à nova taxa sobre os lucros inesperados.

O OE2023 está aprovado. Que avaliação faz?
Considero positiva a proposta apresentada pelo Governo. Parece-me que o Governo, neste Orçamento, procura, com alguma reflexão e ponderação, por um lado, dar o apoio às famílias e às empresas que é necessário, mas, por outro lado, que esse apoio não implique mais inflação.

É suficiente? É o Orçamento de que o país precisava?
Somos um país pequeno, aberto ao exterior, com poucos recursos e, principalmente, com uma dívida pública enorme. Parece-me um Orçamento positivo neste sentido: é o possível, de acordo com a conjuntura internacional, que não é fácil. É um Orçamento cuidadoso, que não procura grandes alterações, nem grandes reformas. Aliás, as reformas não se fazem no Orçamento.

O Orçamento não serve para fazer reformas, mas o Governo fá-las no IRS, ao mudar a lógica do mínimo de existência. Que lhe parece esta alteração?
A fórmula [é] algo complicada. O legislador devia deixar de ligar o complicómetro e ter mais cuidado com o contribuinte. O legislador e o aplicador da lei – a Administração Tributária – deviam, de alguma forma, colocar o contribuinte em primeiro lugar, e, às vezes, isto não acontece. Este é um caso nítido em que isso não acontece. O regime é muito complexo. Ainda que possa aplaudir a intenção de aumentar o mínimo de existência, foi criado um regime tão complexo que, só por isso, é negativo.

Prejudica a transparência do sistema?
Prejudica a transparência do sistema, e cria complicações na interpretação e na aplicação da lei. Provavelmente devia haver, como há noutros países, uma comissão ou alguém no seio da Assembleia da República que pudesse avaliar o resultado e o custo-benefício das normas que são previstas. Esse balanço tem de ser feito de cada vez que o legislador intervém, e, muitas vezes, não é feito. Deveria haver um cuidado ao legislar, que não se compadece com a maneira de aprovar normas mais estruturais que, muitas vezes, são incluídas nas leis orçamentais. O processo de aprovação do Orçamento não é igual ao de aprovação de outras leis. É mais rápido e expedito. Quando se apresentam milhares de propostas de alteração, perde-se a coerência do documento.

Disse que a Administração Tributária deveria pôr o contribuinte em primeiro lugar. Como é que anda a relação entre o Fisco e o contribuinte?
Os contribuintes são a galinha dos ovos de ouro, têm de ser preservados nos seus direitos para poderem continuar a cumprir as suas obrigações, [mas] cada vez são mais assoberbado com obrigações, [que são] cada vez mais complexas. Já não conseguem interpretar as leis com facilidade, muito menos sozinhos. Quem as interpreta tem dificuldade. Entretanto, os impostos proliferam. O contribuinte vai sendo esmifrado. O professor Teixeira Ribeiro tinha uma expressão muito interessante: enquanto nas finanças privadas são as receitas que determinam as despesas, nas finanças públicas é exatamente o contrário, isto é, são as despesas que determinam as receitas. O Estado tem um privilégio, que é, quando precisa de aumentar a sua despesa, com facilidade aumenta a sua receita. Isto é perigoso. Não pode não haver limites. Era importante haver um defensor do contribuinte alheio à AT. E sobre isto, podemos falar sobre os novos impostos.

Sobre os lucros inesperados?
Ainda estou a pensar nos anteriores. Há uma série de contribuições ditas sectoriais e financeiras, que pululam paralelamente aos impostos gerais, e sobre a quais o contribuinte e os deputados não têm o controlo adequado. Se somarmos as receitas destas contribuições, provavelmente representam o quarto ou o quinto maior imposto do sistema tributário nacional. E continuam a aumentar. Já se anuncia uma nova contribuição temporária e obrigatória da energia e do sector da distribuição alimentar.

O Governo vai além do que Bruxelas recomendava.
Um bocadinho. Mas pensando nas contribuições sectoriais e financeiras anteriores, infelizmente, a Constituição, quando foi revista em 1997, passou a ser interpretada no sentido de que estas contribuições sectoriais e financeiras são um terceiro género, que vive ao lado dos impostos e das taxas. Isto teve imensas consequências, porque se chegou à conclusão de que estas contribuições sectoriais seguem regras mais atenuadas do que os impostos, nomeadamente ao nível da reserva de lei da Assembleia da República e do princípio da igualdade. O legislador – e os Governos também – consegue com alguma facilidade arranjar as justificações que entende para proliferarem este tipo de tributos. O windfall tax começou a ser adotado em alguns países, mesmo antes deste regulamento comunitário.

Por exemplo, em Itália.
Itália, Grécia, Hungria, Roménia e no Reino Unido. Hoje é difícil, em Portugal e noutros países, aumentar os impostos, porque já estão suficientemente altos. É mais fácil, do ponto de vista político, arranjar um sector que pague, porque isto não afeta todas as outras pessoas que não estão sujeitas à nova contribuição. Há um regulamento comunitário que entrou em vigor em outubro e que obriga até 31 de dezembro a criar uma contribuição temporária e obrigatória sobre o sector energético. Isto vai levantar uma série de novos problemas.

Como por exemplo?
Problemas inclusivamente constitucionais, porque temos na base da tributação dois elementos, sendo que um deles [os lucros de 2018 a 2021] é anterior à entrada em vigor destas normas. Por outro lado, é preciso ver como é que isto se compatibiliza quer com o regulamento comunitário, quer com outros diplomas europeus. Depois, com certeza que as pessoas mais imaginativas hão de invocar uma série de outras coisas para que se possa atenuar alguns dos efeitos do novo diploma. Curiosamente, ambos os sectores já são tributados: o sector da distribuição alimentar já tem a chamada Taxa Alimentar Mais, e o da energia já está sujeito a uma contribuição extraordinária.

Algumas dessas contribuições extraordinárias foram criadas como temporárias, mas mantêm-se. Teme que a nova medida também se eternize?
A contribuição extraordinária do sector energético é de 2014 e tem sido sempre considerada extraordinária. É evidente que, a partir de determinado momento, passa a ser ordinária. Isto lembra-me o equilíbrio orçamental do tempo do Estado Novo, em que as receitas extraordinárias, que eram os empréstimos, de certa maneira, ao se repetirem todos os anos, perdiam esta natureza. Mas isto [as contribuições] pode ter consequências constitucionais, designadamente do ponto de vista orçamental. Se os deputados quiserem saber qual é o valor da receita de cada uma destas contribuições, têm imensa dificuldade, porque esses valores estão obnubilados noutras receitas tributárias ou nas receitas gerais dos institutos aos quais estão afetados. Isto viola o princípio da especificação orçamental, porque os deputados, quando aprovam as receitas tributárias, têm de saber o que estão a aprovar e não sabem. Veremos se estas novas contribuições não padecem dos mesmos vícios.

Ainda sobre o IRS, o OE traz também uma mudança na retenção na fonte. Que avaliação faz do novo modelo? Peca também por ser complexo?
Sim. É um modelo complexo e, ainda por cima, com regimes diferentes ao longo do ano. Mas também vai no bom sentido. O problema da retenção na fonte é que o Estado anda há imensos anos a financiar-se através de impostos que cobra antes e que se verifica a posteriori que não são devidos. Tudo o que seja aproximar o imposto retido ao imposto devido é positivo. Isto tem sido muito difícil, porque o Orçamento é um Orçamento de caixa. Como no ano passado, não se atualizou os escalões, é possível atualizá-los com um valor um bocadinho superior e é possível também resolver um pouco esta questão [da distância entre o imposto retido e o efetivo].

Os escalões do IRS deveriam ser alvo de atualizações mais expressivas, já que em 2022 não foram atualizados de todo?
Infelizmente, acho que não. Por um lado, é preciso pôr dinheiro nas [mãos das] pessoas por causa da inflação. Mas, por outro lado, quanto mais dinheiro se puser nas [mãos das] pessoas, mais inflação se gera. O Governo fez muito bem em não aumentar demasiadamente os escalões.

O Orçamento prevê, por outro lado, um benefício em sede de IRC para as empresas que aumentem os salários. Acha que é uma boa medida?
O Estado está a meter-se em coisas em que não tem de se meter. O Estado não tem de determinar, nem incentivar aumentos salariais. Ainda por cima, outra vez com um regime complexo. O Estado, de alguma forma, não pode querer fazer com as empresas o que não consegue fazer consigo próprio.

Teria sido mais benéfico reduzir de modo transversal o IRC?
Onde se podia e devia mexer era nas derramas. Por outro lado, andamos sempre a falar das pequenas e médias empresas, mas não percebo porque é que não há uma política de fusão das pequenas e médias empresas. Precisamos de ganhar dimensão. Aqui é que o Fisco poderia ajudar.

Falemos dos criptoativos. Que lhe parece o regime desenhado no Orçamento?
A CMVM diz que é um regime que pode desfavorecer outros instrumentos financeiros.

Acho o local muito desajeitado. O Orçamento nem sequer tem preâmbulo. [Além disso,] a forma de aprovação é muito rápida e não permite a reflexão que se torna necessária em reformas ditas estruturais. A CMVM tem alguma razão, porque [este regime] tem taxas mais baixas. O problema que se coloca é se queremos incentivar esta atividade relativamente às outras. Não estou a dizer que não se devia prever este regime. É importante que exista, mas precisava de ser trabalhado, também do ponto de vista da competitividade.

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