«A solidão mede-se pelos estalos dos móveis à noite quando a poltrona em que me sento de súbito desconfortável, enorme, e os objectos aumentam nos naperons, inclinados para mim a escutarem, a quem terá pertencido a santinha de talha a que falta um dos dedos, que garganta tosse dentro da minha a chamar, que segredos são estes de que não entendo as palavras, o que desejam ao certo vindos de uma gaveta empenada, cheia de laços de cabelo desbotados e fotografias antigas (…)»
O excerto pertence ao último livro de António Lobo Antunes, “O Tamanho do Mundo”, um romance em que várias solidões se cruzam, se entrelaçam, mas jamais se conseguem colmatar ou compensar umas às outras.
Ao longo dos séculos, das épocas, dos géneros, dos estilos, das estéticas, a solidão sempre foi tema da arte, na literatura, pintura, música, cinema, enquanto a fonte mais esmagadora de angústia no ser humano. Desde tempos inaugurais, o medo da solidão assolou as almas mais sensíveis, desesperadas por convivência e contrariando o provérbio instalado «mais vale só do que mal-acompanhado». É algo de muito íntimo, muito profundo, muito ancestral este medo de viver só – ou será, antes, medo de morrer só? – que remonta à nossa condição de mamífero dependente, que, despojado de qualidades inatas, depende unicamente da técnica, do intelecto e do apoio e entreajuda da comunidade em que se insere.
O homem é um ser gregário. Os outros são essenciais à nossa sobrevivência e ao nosso bem-estar psicológico. E se, excepcionalmente, existem, ainda hoje, no século XXI, eremitas, por vontade própria, ou circunstâncias singulares da vida, eles são isso, excepções, dignas de comparecerem numa qualquer secção de insólitos dos media. A auto-suficiência é um mito.
E eu preciso das minhas solidões
A recente edição do Festival Literário da Póvoa do Varzim, Correntes d’Escritas, dedicada este ano à memória da poeta Ana Luísa Amaral, atribuiu, enquanto tema, a cada painel de oradores um verso da autora – um deles desafiava a reflexão sobre sentir-se só: «E eu preciso das minhas solidões», de “Imagem”, um poema de amor em que o «eu poético» se lamenta por a paixão lhe roubar tempo e espaço para criar. «Estragas-me a paz. / E eu preciso das minhas solidões, / de bocados mentais sem ti».
A propósito desse mote, lembrava a escritora e editora Inês Pedrosa, o final do romance “Para Sempre”, de Vergílio Ferreira: «Aqui estou. Na casa grande e deserta. Para sempre». E «todos os artistas», garantiu a oradora, «conheceram um qualquer lugar da casa grande da solidão». Acrescentando: «Alguns não encontram na mitificada solidão do artista mais do que o recolhimento necessário à realização da obra.
Muitos escritores e filósofos têm alertado para a diferença entre a solidão entranhada, dolorosa, dos excluídos da sociedade, dos que não têm ninguém, nenhuma palavra, nenhuma possibilidade de troca, e a solidão desejada, a solidão luxuosa dos guardadores de sentido, que pintam, escrevem, compõem – e têm sempre um público, nem que seja apenas o outro de si mesmos, a certeza de um talento (real ou irreal, pouco importa) no fundo da sua alma».
Por isso, lembrava ainda Inês Pedrosa, Marguerite Yourcenar considerava que o escritor não estava mais só do que outra pessoa qualquer, normalmente tocada pela solidão que marca os humanos no nascimento, no trabalho e na morte. E concluía: «Quando acolhemos muitos seres, nunca somos o que se chama sós».
Na literatura portuguesa não será no auto-intitulado «mais triste livro que há em Portugal», o “Só” de António Nobre, que se encontra descrita a solidão mais sombria, esta é uma muito densamente povoada obra, «carregada de amores, amigos, leituras, suaves memórias de infância. Saudoso, sim. Mas solitário?», duvidava a oradora. «Nem a vida nem a obra de António Nobre o confirmam». É, sim, defendeu a escritora, em “Solidão” de Irene Lisboa «que encontramos todas as notas desse deserto íntimo, dedilhadas com o desespero da clarividência.
Irene descreve a solidão útil, pragmática, do homem de letras, a solidão arrogante do misantropo para mostrar como estes exercícios de estilo estão longe da ‘solidão real’, ‘a solidão do desamparado’, aquele a ‘quem tudo falta’». Dessa solidão, segundo Irene Lisboa, citada por Pedrosa, não há registo na literatura: «E também ainda eu a não serei capaz de descrever. Julgo que a conheço, que a sinto, mas acho-a de uma índole tão complexa, tão avassaladora, tão vazia de factos e tão cheia de amargos, que me sinto coacta. É uma coisa pobre e de má tradução».
Pobre e de má tradução
«Pobre e de má tradução», mísera e de difícil compreensão, a solidão é um conceito tão vasto e indefinível, contém tantas nuances e mutações, que não deveria ser conjugado no singular. Em vez do conceito de solidão, será preferível encará-lo como no verso de Ana Luísa Amaral, enquanto «solidões», tais são as suas diversas percepções e peculiaridades.
A solidão pode ser procurada, desejada, ambicionada, até considerada um luxo irrenunciável, por oposição a algo de tão opaco, soturno e funesto que pode culminar em situações graves de saúde mental, inabalável melancolia, depressões e até suicídio. A solidão pesa como um manto carregado de ausências e silêncios povoados de ruídos inquietantes, como os estalos nos móveis de que falava Lobo Antunes, como escutar os nossos próprios passos a ecoar na casa grande vazia de Vergílio Ferreira. Para Sempre.
A solidão é o tal deserto íntimo de onde jamais se consegue sair ou uma gaiola apertada, da qual não se pode escapar, porque nem sempre a chave se encontra ao nosso alcance. Tratar-se-ão, é claro, de situações extremas de solidões instaladas e irreversíveis. Mas em todo o caso, na sociedade ocidental e capitalista em que vivemos, em que a competitividade é estimulada desde a escola e o individualismo e o consumismo imperam, a solidão é inconfessável, como um estrondoso falhanço.
A solidão goza da maior impopularidade e um indivíduo sem companhia, sem relações, sem consolo, que apaga sozinho as velas do seu aniversário, é considerado um falhado. Por isso, muitos ocultam este sentimento de desamparo, dissimulam e fecham-se cada vez mais num imenso vazio cheio de ecos, abismos e melindres.
E se este sentimento parece intrínseco a esta complexa, única e irrepetível marcha que se chama vida humana – a solidão está presente desde o princípio dos tempos, e há quem assegure que tudo o que fazemos, todos os nossos actos, desde os primeiros passos até aos últimos, serão tentativas (às vezes vãs) de reatar aquele cordão que foi cortado e que nos unia tão infalivelmente ao outro, no dia do nosso nascimento.
Será esse o nosso devir, o nosso maior desígnio, chegar ao outro, estar no outro, conquistar um lugar nosso na comunidade, uma certeza de pertença, de reconstituir incessante da alcateia, pese as faltas, as contrariedades, as mortes… Desde os pontinhos mais remotos na linha do tempo da presença humana na Terra, os homens são aqueles que não deixam ninguém para trás. Nem os mortos.
O que pode parecer bizarro, nesta sequência evolucional do ser humano, é que nunca como hoje houve tantas possibilidades de comunicação, tanta estrada, tanto carril, tanta rota de avião, tanta tecnologia de aproximação, tantas hipóteses de encontro à distância de um clique, no mundo real e virtual, e nem isso nos fez sentir menos sós. Tão ligados e ao mesmo tempo tão isolados. Tão juntos e ao mesmo tempo tão sozinhos.
O famoso «solitário andar entre gente» (Camões), faz-se entre família, amigos, colegas e vizinhos, ou anónimos na rua, mas também por entre todos aqueles que, no mundo inteiro, desfilam debaixo dos nossos polegares.
A economista e professora britânica Noreena Hertz destaca a solidão como característica definidora do século XXI. No seu livro, “O Século da Solidão”, expõe a sua teoria sobre os seus efeitos gravosamente nocivos, não só para a saúde pública (mais perigoso do que fumar moderadamente ou a obesidade, este isolamento extremo é responsável por depressões, demências e mortalidades precoces), mas também para a saúde da democracia: sentindo-se abandonados, ignorados e não escutados pelos poderes institucionais, cada vez mais pessoas têm maior tendência para aderir a fake news, aceitar teorias de conspiração e manias de perseguição, hostilizando outros grupos em função, por exemplo, da sua cor de pele, religião ou orientação sexual.
No fundo, trata-se da necessidade desesperada de pertença e de serem, enfim, acolhidos numa tribo. E se no século da solidão se mantém este paradoxo de cada vez mais ligados, cada vez mais distantes, proliferam negócios que tentam beneficiar de todos estes solitários: desde redes de online dating até empresas que «alugam» companhia, sem nada de amoroso ou sexual associado.
No Reino Unido as questões da solidão e o isolamento dos seus cidadãos são tratadas como um problema de saúde pública, uma pandemia oculta, que presidiu à criação, em 2018, de um Ministério da Solidão.
Em Portugal ainda não chegámos a este ponto, talvez o nosso tecido social, o nosso conceito de família alargada e de entreajuda de vizinhança seja mais coeso. No Reino Unido detectaram-se quase dez milhões de britânicos (o equivalente à população portuguesa), nas várias faixas etárias, que passavam dias e semanas sem qualquer interacção social, provocando riscos para a saúde mental e custos na economia britânica que atingem os três mil milhões de euros.
Um pouco por tudo isto, também pelo envelhecimento populacional e porque é cada vez mais comum do outro lado da linha de um serviço estar um sistema robotizado, e as marcações, pedidos, encomendas fazerem-se por aplicações de telemóvel, sem intervenção humana, uma cadeia de supermercados dos Países Baixos resolveu inverter a tendência, criando caixas de atendimento lento para aqueles que, além das suas compras, têm necessidade de interagir e conversar. Estas caixas lentas, além de serem notícia em todo o mundo, estão a expandir-se agora para outros países do norte europeu. Para muitos clientes este pode ser o seu único momento de socialização do dia.
Os confinamentos decretados em função do Covid-19 serviram como balão de ensaio para psicólogos, sociólogos e outros estudiosos analisarem como é que a sociedade reagia ao isolamento. Passados poucos dias, já as linhas de conforto emocional estavam atoladas. Parecia que as pessoas se angustiavam mais com o isolamento e o distanciamento social do que com a própria infecção.
Estar sozinho não equivale a sentir-se sozinho, nem isolamento é sinónimo de solidão. Isto não é um mero jogo de palavras, trata-se de conceitos distintos. Também convém desfazer o mito de que os indivíduos mais solitários vivem no campo, em sítios ermos e desolados. Por vezes, a pessoa mais desesperadamente só pode ser o vizinho do lado num apartamento de uma grande cidade. Ou até o parceiro com que se escolheu partilhar a vida.
Claro que as camadas idosas da população são, por inactividade, por morte de amigos ou viuvez, mais propensas à solidão, mas será, na realidade, o isolamento dos adolescentes que mais preocupa os especialistas.
De qualquer das formas, pela primeira vez, Portugal atingiu a marca do milhão de pessoas a viverem sós, em mono-agregado, seja por opção, divórcio ou viuvez, seja por migração em virtude de emprego ou estudo. Lá por estarem sós não significa que sejam sós (e aqui a distinção entre o verbo ser e estar é decisiva). Importante é ficar assente que nenhuma relação virtual pode alguma vez substituir um olhar, olhos nos olhos não «pixelizados», sem ecrãs pelo meio.
As pessoas precisam de um abraço, não de likes. Precisam de amigos, não de seguidores. Aliás, como se costuma dizer, ter muitos amigos nas redes sociais é como ser rico no Monopólio.
Ana Margarida de Carvalho assina este texto no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), na qualidade de autora de “Viver só”, editado pela FFMS.