Fim semana. Jardim das Amoreiras, em Lisboa, a escassas centenas de metros da Assembleia da República. Dois casais passeiam e encontram-se por acaso. Cumprimentam-se à distância, cumprindo a lei. Por acaso, naquele momento, passavam dois polícias da PSP. Aproximam-se dos quatro e mandam-nos dispersar. A legislação não permite ajuntamentos de mais de três pessoas. Absolutamente ridículo e aviltante.

Domingo de Páscoa. A maior festividade dos cristãos, mais de dois mil milhões de pessoas. Basílica de São Pedro. O Papa Francisco celebra a missa, só. À distância, alguns ajudantes. A solidão do Papa disse mais que uma multidão. Absolutamente admirável. A televisão estava lá. A cerimónia pôde ser vista em todo o mundo.

Domingo passado, a iniciativa One World – Connect – Together at Home, promovida por algumas empresas gigantes, com moderação de Lady Gaga, organizou um concerto de donativos para a Organização Mundial de Saúde que pôde ser visto em inúmeros canais de TV e online. Mick Jagger e os Rolling Stones atuaram de suas casas dando o exemplo, como de resto os outros participantes. Angariaram 127 milhões de dólares. Também o popular DJ David Guetta organizou online duas horas de música a partir de Miami apelando a donativos e para as pessoas não saírem de suas casas. Conseguiu 600 mil dólares.

O dia 25 de Abril é designado como o Dia da Liberdade em Portugal. Esse dia é respeitado pela população que ainda se lembra que, naquele dia, há quase meio século, foi posto fim a uma ditadura e a uma guerra colonial. Mas, no ano seguinte, as forças democráticas portuguesas, encabeçadas pelo Partido Socialista de Mário Soares, foram obrigadas a enfrentar e derrotar os comunistas apoiados pela União Soviética e a imposição de uma nova ditadura.

A democracia foi reinstaurada com a ajuda dos nossos aliados da NATO, em particular dos EUA e da Alemanha. O 25 de Abril de 1974 tornou-se a maior festividade de certas esquerdas, assumindo um cariz fanático, mas o verdadeiro dia da Liberdade foi o 25 de novembro de 1975.

Não vou ao ponto de sugerir a imagética do Professor Luiz Fagundes Duarte, citado por João Soares, que disse que não lembra a um “cão tinhoso” comemorar o 25 de Abril na Assembleia da República (AR). Propus nesta coluna, há poucas semanas, que a data fosse celebrada na AR, com muita dignidade e emoção, com a entoação do Coro dos Prisioneiros e do Coro Final da ópera “Fidelio” de Beethoven, ela mesma um hino à liberdade.

É provável que a minha ideia tenha sido levada como uma brincadeira intelectual. Mas não era, como se prova agora pelo enorme coro de protestos contra a celebração do evento nos moldes em que sempre foi feito, com uma cerimónia vetusta que desde há muitos anos apenas serve para afagar o ego dos que antigamente se chamavam “forças vivas da nação”, ostentação arrogante de quem detém o poder político, que não direi moribundo mas em estado catatónico autoinduzido.

O primeiro-ministro diz que não tem nada a ver com o que decide a AR, mas não deixa de argumentar que a AR tem continuado a reunir mesmo em tempo de confinamento. Por isso, não vê razão para andarmos “nervosos”. Acho que não percebeu o sentimento de raiva que vai por aí contra os políticos que se permitem aquele ajuntamento inútil, enquanto proíbem que quatro amigos se encontrem por acaso num jardim de Lisboa e o Papa celebra a Páscoa em solene solidão na Basílica de São Pedro.

O Presidente da República diz que também não se mete, de acordo com a Constituição, nos assuntos da AR e remete-se ao silêncio aquiescendo e participando na celebração fanática das esquerdas radicais que foram derrotadas a 25 de novembro de 1975. É provável que a sua quietude se deva a estratégia eleitoral para não antagonizar possíveis eleitores do PS, BE e do PC nas próximas eleições presidenciais.

Não poderia o presidente da AR, cidadão Eduardo Ferro Rodrigues, falar para uma câmara de deputados vazia e fazer transmitir a cerimónia pela televisão e redes socias? O Presidente da República, cidadão Marcelo Rebelo de Sousa, não poderia ficar sossegado em casa ou no palácio e participar por videoconferência, assim como o primeiro-ministro, cidadão António Costa, e o presidente do Constitucional, cidadão Manuel da Costa Andrade?

O presidente da AR mantém a celebração da cerimónia fanática onde nenhum trabalho legislativo vai ser feito, em que nada se vai decidir, pelo que o argumento do primeiro-ministro não tem cabimento, e em que apenas serão ditas vacuidades a expensas dos contribuintes. Aquele ajuntamento será visto por muitos como um ataque ao ideal de Liberdade, revelando desprezo pelos cidadãos que ficam em casa, que se sentem prisioneiros, cumpridores das leis que, aqueles mesmos que as aprovaram, não cumprem consigo mesmos.

Todos os dias são ocasião para celebrar a Liberdade e não apenas a frágil e ameaçada liberdade conseguida naquele dia de 1974. A democracia portuguesa só ficou legalmente consolidada com as revisões da Constituição de 1976, emanada do 25 de Abril, realizadas em 1982, 1989, 1992 e 1997.

E, repare-se, as cerimónias religiosas estão todas proibidas. Porque não esta?

A PSP vai dispersar aquele ajuntamento de mais de quatro pessoas?