A proposta da Iniciativa Liberal (IL) para a criação de um  imposto único (flat tax) sobre o rendimento de 15% teve pelo menos um mérito, que é o de termos começado a debater o papel que a fiscalidade deve ou não desempenhar no tema da desigualdade social.

No fim de contas, tudo se resume a esta questão: queremos construir um país onde quem tem maiores rendimentos paga mais impostos, ou, pelo contrário, um onde todos contribuem com uma mesma percentagem do que auferem, independentemente de ser muito ou pouco?

Em boa verdade, os dois modelos têm vantagens e desvantagens. O primeiro é mais justo socialmente, porque distribui o contributo para o bem comum em função da capacidade de cada contribuinte. Desta forma, a fiscalidade contribui para reduzir as desigualdades. Quem ganha mais, consegue também pagar mais.

A desvantagem é o facto de sobrecarregar com impostos a escassa classe média que temos. Está tudo dito quando em Portugal um salário líquido de dois mil euros é considerado um rendimento de “rico”, para efeitos fiscais. Enquanto isso, os contribuintes com menores rendimentos praticamente não pagam IRS, enquanto os verdadeiros ricos têm à disposição a criatividade dos melhores advogados para lhes reduzir ao mínimo a carga fiscal.

O segundo modelo tem como principal vantagem o facto de incentivar a criação de riqueza e a poupança. Como desvantagem, tem o facto de contribuir para aumentar as desigualdades sociais e diminuir os meios que o Estado tem à disposição para prestar serviços públicos que, nas últimas décadas, foram essenciais para reduzir as desigualdades de direitos e oportunidades entre cidadãos de diversas origens sociais, regionais e étnicas.

Um rombo de dois ou três mil milhões no Orçamento do Estado não deixaria de ter impacto na saúde, na educação e noutros serviços públicos, para não falar do pagamento da dívida pública. Até porque ninguém pode antecipar com elevado grau de certeza que, como a IL defende, o Estado iria recuperar esse valor com mais receita de IVA. As experiências a nível internacional não permitem afirmar isso de forma tão conclusiva.

Desigualdade, Democracia e Economia de Mercado 

É difícil não encarar com simpatia uma descida dos impostos em Portugal, acompanhada de uma necessária reforma do Estado, mas devemos ter muito cuidado com qualquer proposta que possa agravar as desigualdades sociais, que em Portugal vêm de muito longe.

Podemos citar vários estudos e relatórios internacionais que concluíram que os países onde existe mais desigualdade apresentam taxas de criminalidade mais elevadas e estão pior posicionados em vários indicadores de saúde e qualidade de vida. O próprio crescimento económico é afectado pela desigualdade social, segundo um estudo da OCDE.

Além de criar as condições para o aumento da criminalidade, a desigualdade corrói a coesão social e provoca instabilidade política e económica.

No limite, está em causa não apenas uma questão de justiça social, mas sim a própria sobrevivência do sistema capitalista, da democracia representativa e da sociedade aberta. Não por acaso, os radicalismos, os populismos e os extremismos ganham mais força nos países onde as desigualdades são mais gritantes.

Em 1917, o comunismo não se implantou nas grandes potências industriais da época, onde o proletariado era de facto um grupo social relevante, mas sim num país agrícola e ainda semi-feudal, onde a extrema opulência de alguns milhares de aristocratas convivia com a pobreza (para não dizer miséria) da esmagadora maioria da população. O mesmo sucedeu noutros países, como a China maoísta, Cuba ou a Venezuela, ao longo do século XX. No extremo ideológico oposto, a ascensão do nazismo na Alemanha também se deveu em parte à incapacidade dos políticos liberais clássicos de colocarem em prática medidas que melhorassem as condições de vida de milhões de alemães que caíram na miséria em 1929.

Mas não precisamos de recuar tanto no tempo: basta recordar que, nos EUA, Trump foi eleito com os votos de milhões de eleitores que ficaram do lado errado da globalização e da prosperidade das últimas décadas. Claro que Trump enganou esses eleitores, porque o seu mandato foi muito favorável para os super-ricos, os chamados “1%”. Mas o pior é a instabilidade política e social em que os Estados Unidos estão mergulhados. Hoje, nos Estados Unidos, há quem discuta de forma séria se o país terá uma transição pacífica de poder nas próximas eleições presidenciais e se existe até o risco de uma segunda guerra civil, dentro de alguns anos, tal a polarização ideológica que existe. Tudo isto seria impensável antes da grande crise financeira de 2008 e da posterior ascensão do populismo. Era o tipo de situações que víamos acontecer em filmes distópicos, em ditaduras latino-americanas ou em países do chamado Terceiro Mundo.

Na Europa, as desigualdades não são tão profundas como nos EUA, devido ao legado do modelo social europeu. Depois da Segunda Guerra Mundial, os líderes europeus  compreenderam que a única forma de enfrentar a ameaça soviética e de manter a economia de mercado passava por diminuir as desigualdades através da atuação do Estado, conjugando a economia de mercado com princípios como a solidariedade social e a igualdade de oportunidades. A NATO manteve a URSS à distância, mas foi o modelo social europeu que criou uma sociedade de bem estar, com sistemas de segurança social e serviços públicos universais, que afastou as massas do canto das sereias do Kremlin.

Como sabemos, este modelo social europeu está em crise desde os anos 70, mas devíamos pensar duas vezes antes de o substituirmos por um regresso ao passado.

Mais desigualdade significa menos coesão social e mais extremismo num futuro próximo. O verdadeiro desafio passa por conseguir reformar o estado social, baixar a carga fiscal e criar condições para uma economia mais competitiva, mas sem agravar as desigualdades.