1. Em tudo há um antes e um depois e, pelo meio, a peça em cena, o espectáculo.
O antes aparece, neste caso, com uma situação menos nobre. Há algum tempo que não ia ao teatro! Ao cinema vamos, “por dá cá aquela palha”, numa decisão fácil de fim-de-semana. O teatro requer sempre alguma coisa mais.
Essa “vírgula” apareceu. Aconteceu a ler o JL. Como primeiro impulso uma pequena referência sobre a peça “Canto da Europa” no Teatro D. Maria II.
“Canto da Europa” fez-me despertar a curiosidade do tratamento que, na peça, poderia ser dada às questões europeias, às suas várias facetas, as dúvidas, os caminhos possíveis e, nomeadamente, a grande questão de fundo: para onde vai esta Europa? Será que caminha? Existe uma estratégia para a levar a bom porto? E já agora em que consiste esse bom porto?
As dúvidas, as incertezas continuam muitas… E os jogos de poder, internos e externos, são poderosos. E os desequilíbrios ainda não estão nada aplainados. E as pessoas, num lugar lá muito ao longe… O grande fracasso da Europa. Há negócios, não há a pessoa.
2. Conversando sobre o assunto com uma grande amiga, ligada ao teatro, à literatura, à poesia, entra na calha uma outra peça também em cena “A Morte de Danton”.
E assim, em dias diferentes, fomos visitar as duas peças. E valeu a pena e aqui começa o depois, a apreciação e a partilha de leituras sobre o que cada um viu.
Sem dúvida, muito mais enriquecedor para mim. Não é todos os dias que se vai ao teatro com alguém amigo que, a ver teatro, está num outro patamar.
Para além de usufruir da companhia é ter uma espécie de guia com que se pode partilhar muitas linhas de leitura e alertas para aspectos da encenação e interpretação que me escapariam como espectador comum, foi/é um privilégio enriquecedor.
Textos muito difíceis de representar, é a primeira reacção da minha amiga. Apercebi-me, assim, da dificuldade representativa dos textos, das nuances na interpretação dos actores e da sua variação de ritmo, dos gestos tão importantes para a compreensão, da encenação e do contexto global de cada uma das peças. E partilhei e absorvi tanto quanto pude da troca de ideias entre nós.
Assim, fui ao teatro, usufruindo de uma lição avançada de Teatro.
3. Mas apetece-me voltar ao impulso inicial e falar do “Canto da Europa”, uma peça na base de um texto de JLP – Jacinto Lucas Pires (escrito como um coro, diz o autor), produzido há quatro ou cinco anos para, na altura, envolver uma orquestra e o coro do São Carlos.
A peça “ruiu” por questões de produção e ficou na gaveta este tempo.
JLP foi agora desafiado (por quem lhe tinha inicialmente encomendado o texto, Tiago Rodrigues – director actual do D. Maria II) para encenar o texto “sem orquestra, sem coro e com actores”.
Numa conversa com Maria João Guardão, em 9 de Dezembro 2019, publicada, aliás, em folheto distribuído pelo Teatro, JLP refere que quando, agora, (re)pegou no texto se pôs a pensar “como fazer música no espaço, sem música. Porque aquilo não podia deixar de ser musical, mesmo sem orquestra, mesmo sem coro”.
E então surge o problema: “mas como é que, sem música, isto é musical?”
JLP resolve e imagina uma encenação com 12 actores (não sei se o número 12 tem algum significado, talvez!). Actores com experiências muito diferentes de vida, desde os estagiários a consagrados e com grandes simbologias nos gestos, nas vozes, nas frases e uma movimentação ritmada mas com mudanças de ritmo.
4. As questões e as afirmações sobre a Europa vão surgindo, explícita e implicitamente, ao longo do espectáculo e são muito multifacetadas. Uma Europa para as pessoas (aliás, a maior falha da Europa que temos), aberta (e gostei da ironia de JLP na conversa referida), “não fechada na lógica de gabinete do Eurogrupo, numa sociedade que é contrária a toda a ideia de democracia – não se percebe, não há atas, há pessoas que não foram eleitas para a função, e decisões de corredores, chamadas de realpolitik, que não têm nada a ver com os cidadãos e muito menos com o dia de amanhã, no sentido de futuro…”.
Temos lá o Mário Centeno, que, admito, tem consciência plena daquela grande anomalia irracional num quadro democrático, anomalia que se tornou quase estrutural e decisiva, existe e, existindo, melhor estar (participar) do que não estar e desenvolver alguma influência.
Há quem não tenha esta visão, (denegrindo a ida de Centeno para presidente do Eurogrupo) mas temos de saber ouvir quem pensa diferente de nós. Isto devia ser a Europa. Saber ouvir. O problema é que as visões não tendem a confluir mas a extremar-se, com tendências de desagregação.
“Canto da Europa” como diz Maria João Guardão “instala uma geografia muito concreta para a cidadania – uma Cidade Europa feita de praças, esplanadas, arranha-céus com instituições europeias dentro, Avenidas da Liberdade e Teatros Nacionais –, imagina uma Europa em que ainda acreditamos que continuamos a considerar possível”.
Em toda “esta” Europa do teatro há um silêncio, certamente porque difícil, a Europa ensanduichada sem estratégia autónoma perante os EUA que a deseja anã, não mais do que um espaço económico com quem fazer negócios sob o seu domínio.
A Europa que se deixa levar por histórias da carochinha como a da Tecnologia do 5G e, em especial, da Huawei. A União Europeia encontra-se de facto perante dois espaços político-económicos muito poderosos, os EUA e a China. Não se trata de uma questão de escolha mas de posicionamento. E o que existe é um posicionamento de submissão da Europa aos EUA que quase “ilegitima” o investimento chinês nos países europeus.
O nosso País tem sido alvo de pressões americanas nesse sentido. As pressões vêm com a capa de que tais investimentos, sobretudo no campo das tecnologias avançadas, podem fazer perigar a democracia e a segurança (cibersegurança).
No entanto, fazem vista grossa com o que se passa com as empresas tecnológicas dos EUA, como o uso ilegal de milhões de dados do Facebook para manipular processos eleitorais. Mas a razão real não é essa. É o pavor de perder o controlo dos instrumentos tecnológicos que lhe permitem dominar o Mundo e rapidamente deixarem de ser o número 1 da economia e da política mundial.
A União Europeia necessita de uma estratégia em simultâneo de equidistância e de cooperação para projectar a sua posição no Mundo.
A ideia do Ocidente “uno” é uma treta real e com maioria de razão ainda no actual contexto Trump. A Europa tem é de saber negociar e cooperar com quem está na vanguarda da tecnologia e o 5G encontra-se exactamente nessa situação, sob pena de perder o pé, no contexto da globalização mundial.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.