Estamos em redefinição da ordem económica mundial. Não é por causa do vírus, apesar de muitos o fazerem catalisador, alguns até mesmo fundador, do processo. A história já vem de há pelo menos 20 anos, com o poder alargado do setor financeiro e a relocalização dos seus centros, a pressão sobre os recursos e as batalhas (frequentemente subterrâneas) por eles, as alterações climáticas e riscos associados, o crescente papel da China e da nova Rússia, o crescimento desmesurado de gigantes das tecnologias, da logística e das “infraestruturas” da informação e do conhecimento.

Até que ponto o imaterial vai prevalecer sobre o material e quais os limites do redesenho da ordem internacional são as principais incógnitas. As crises financeiras e as migrações são uma expressão disto; a eleição de Trump e o referendo inglês são outra. Nos EUA as próximas eleições, daqui a 100 dias (na História, 100 é um número “redondo”, desde os 100 dias de Napoleão, que não foram 100 dias, até à Guerra dos 100 anos, que não foram 100 anos), vão decidir a política americana para os próximos anos e serão o principal fator estruturante no curto prazo da ordem internacional. É caso para dizer, com exagero, que nunca tão poucos decidiram tanto sobre a vida de tantos.

Trump imprimiu a sua impressão digital na política americana, é discutível se na boa direção. Internamente, boa parte foi na má, a começar por usar privilégios presidenciais para reforçar o seu poder sobre instituições e promover próximos ou livrá-los de problemas; mas o que mais marca é, externamente, a aproximação à Coreia do Norte e o conflito com a China, curiosamente dois movimentos opostos mas que mostram como, com originalidade, valoriza o conflito económico sobre o político, porventura por acreditar que é o poder económico que determina a longo prazo o político e não o contrário. E tratou os tradicionais aliados pior que os inimigos históricos (de 100 anos, desde 1917).

Atualmente, e perante sondagens desfavoráveis, em boa medida por ter descurado o vírus a que chamou “Kung Flu”, a sua administração quer tornar irreversível a política externa de conflito com a China, acusando os chineses de espionagem e encerrando-lhes representações diplomáticas, com as inevitáveis retaliações, enquanto Pompeo relembra a dúvida de Nixon se a abertura à China não era a criação de um Frankenstein. A mesma política musculada que faz os americanos ameaçarem com sanções as empresas que constroem o Nord Stream 2, pipeline para fornecer gás natural russo à Alemanha, por reforçar a interdependência entre Rússia e União Europeia. À força de querer isolar os outros, os EUA acabam isolando-se a si próprios.

A próxima administração americana é estratégica para o redesenho internacional, e para minimizar estragos. Ou não. Vivemos um momento histórico, mas histórico nem sempre quer dizer bom.