Apesar da pandemia de Covid-19, a Ponte delle Guglie, em Veneza, está repleta de turistas. Esta passagem, hoje uma travessia fácil, esteve sob apertado controlo até ao século XVIII, quando a ponte era a entrada principal para a única área de residência legal dos judeus venezianos, sendo à noite encerrada pela polícia municipal. A este bairro chamou-se “gueto” – um ponto de origem amiúde esquecido relativo a um dos descritores mais contestados e polémicos da urbanidade moderna.

Os primeiros guetos eram guetos físicos, e sua característica distintiva era a separação física. Foram apelidados de “preservativos urbanos”, protegendo os cidadãos da Europa medieval dos perigos e desconforto de encontrar judeus nas ruas. Após a Segunda Guerra Mundial, o termo passou a remeter para bairros desfavorecidos um pouco em todo o mundo. Este novo tipo de gueto não se caracterizava por restrições explícitas de mobilidade – as pessoas são livres de entrar e sair de guetos negros ou guetos gays –, mas diferenças óbvias na demografia e na vida social tornaram-nos claramente visíveis a olho nu.

Hoje em dia, após sucessivas vagas de gentrificação e migração urbana, os guetos estão a tornar-se cada vez mais invisíveis. A era em que vivemos é marcada pelo surgimento de formas mais subtis e, portanto, mais insidiosas de segregação, que só poderão ser reveladas sob o prisma de uma lente nova e mais sagaz: Big Data. Os guetos assumiram uma nova forma – a nossa sugestão é apelidá-los de “guetos liminares” – e é necessária uma nova visão tecnologicamente aumentada para os ver.

O Big Data revoluciona a forma como vemos o nosso ambiente construído, particularmente ao desviarmos o foco da cidade física – há muito o principal assunto das nossas investigações quantitativas – para as interações humanas que ocorrem no âmbito da cidade. No passado, o nosso estudo sobre a socialização era, acima de tudo, qualitativo por falta de ferramentas de medição. Hoje já não é assim – adornado de próteses eletrónicas, o Homo electronicus deixa vestígios omnipresentes da sua passagem. E estes despojos de telemóveis, smart watches e afins, podem ser transformados em preciosa matéria-prima para o estudioso urbano experimental.

Alguns trabalhos recentes desenvolvidos pelo nosso grupo no MIT, com base em Big Data, mostraram como a segregação assume formas subtilmente diferentes. Por exemplo, usámos dois tipos de dados de telemóvel – rastreamento de localização anónima e ligações entre contatos – para criar dois índices distintos. O primeiro índice, a segregação física, estima a probabilidade de pessoas de diferentes estratos socioeconómicos se encontrarem na rua. O segundo índice, a segregação de comunicação, mede a frequência com que pessoas de diferentes origens estabelecem ligações entre si.

Estas novas medidas revelam novas formas de guetização liminar. A palavra “liminar” remete para limites/fronteiras e espaços de transição, e ilustra como a segregação assume formas cada vez mais subtis. Em vez de sermos divididos por linhas divisórias claras e óbvias, dividimo-nos silenciosamente de acordo com os locais onde que frequentamos e com quem falamos ao longo do dia.

Os guetos liminares são áreas urbanas delineadas por falhas invisíveis, como fraturas ósseas visíveis apenas através do uso de raios-X. A sociedade é guetizada quando as experiências humanas partilhadas, que podemos começar a quantificar através de índices de segregação física e social, caem abaixo de um certo limite. Ora, podemos dizer que nos movimentos da vida quotidiana, as pessoas estão a guetizar-se.

Em Estocolmo, na Suécia, verificamos que as pessoas estão, tendencialmente, expostas a pessoas com níveis de rendimento e de educação semelhantes aos seus, mesmo quando se movimentam para além dos seus bairros de origem.

Nos espaços de transição da vida quotidiana, os ricos interagem com os ricos e os pobres interagem com os pobres. Este efeito é mais do que apenas uma consequência da segregação residencial: se puder escolher entre duas áreas à mesma distância da casa de alguém, onde existe o mesmo tipo de oferta de serviços, qualquer residente de Estocolmo tenderá a optar por aquela que é socioeconomicamente semelhante à sua. Trabalhar em prol de bairros residenciais integrados socioeconomicamente, sem ter essas divisões em consideração, significa não captar uma parte fundamental das experiências urbanas vividas.

Para além do tecido físico da cidade, a cultura e os estilos de vida também desempenham nela um papel. Poderão dois anos de isolamento domiciliário, devido à pandemia de Covid-19, deixar uma cicatriz mais permanente na sociedade?

O crescimento das empresas de entrega ao domicílio, que permitem aos consumidores urbanos do mundo industrializado ter comida, roupa e quase tudo em casa à distância de um clique, destrói as oportunidades de interação social em lojas e restaurantes. In extremis, para quem pode pagar, passa a ser possível afastar-se ainda mais da interação com pessoas de diferentes estratos sociais, o que cria um maior desconhecimento face ao trabalho que o seu tipo de consumo implica.

Medimos esses fenómenos numa outra cidade europeia, o Porto, em Portugal, que registou quebras na diversidade de interação entre seus moradores de até 35%, na sequência do pico de casos de Covid-19 em janeiro de 2021. Essas quebras foram mais acentuadas para certos grupos de pessoas: mulheres e idosos tornaram-se especialmente “guetizados”, ficando os seus encontros sociais ainda mais restritos a indivíduos socioeconomicamente semelhantes.

Os muito ricos e os muito pobres também registaram maiores diminuições em termos de segregação social no período pandémico, enquanto a classe média conseguiu manter a habitual amálgama. Essas diferenças entre grupos identitários, ao nível do acesso a alguns dos recursos mais valiosos das cidades – a diversidade de interações com outras pessoas –, levantam questões essenciais sobre a equidade urbana. Resta saber quão permanentes serão essas quebras, pelo que monitorizá-las deve ser uma parte consistente do debate em torno da recuperação da pandemia de Covid-19.

Para além de entender os guetos liminares, também precisamos de desenvolver ferramentas que possam reintegrá-los na cidade. Soluções de longo prazo exigirão medidas sociais, culturais e políticas. No entanto, no curto prazo, o planeamento e o design urbano podem dar contributos extremamente relevantes.

Recentemente, a investigação económica em Nova Iorque fez luz pela primeira vez sobre uma relação causal entre parques e integração social; os parques têm uma capacidade excecional de atrair visitantes de todos os estratos sociais. Em Estocolmo, juntamente com a KTH University, encontrámos uma correlação significativa entre escolas e integração; os campi incentivam o estabelecimento de relações entre alunos e funcionários, que persistem muito além dos momentos iniciais de contacto nas aulas e nas cantinas.

No entanto, a mera compreensão dos guetos liminares pode dar-nos uma nova vantagem, à medida que procuramos gerir as duas forças-chave que se encontram em jogo nas cidades desde o seu aparecimento, há cerca de dez mil anos: agregação e segregação. Precisamos que as cidades se concentrem na primeira força e desempenhem a sua função primordial – fazer com que sejamos capazes de exceder a soma das nossas partes, livres da interferência da divisão e da exploração.

Para isso, teremos de identificar falhas urbanas invisíveis e construir novas pontes para atravessarmos – com a facilidade com que hoje atravessamos a Ponte delle Guglie, em Veneza.

Carlo Ratti assina este artigo também na qualidade de cocurador da Porto Design Biennale 2021. Um texto coescrito por Richard Sennett, atual Senior Advisor da ONU para o Programa Cidades e Alterações Climáticas e Professor convidado no MIT na área de Estudos Urbanos. Foi consultor científico na Porto Design Biennale 2021.