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Guterres na ONU: escrever direito por linhas tortas

Socialista comprometido com o Catolicismo, o antigo primeiro-ministro de Portugal ultrapassou todas as etapas neste desafio da política internacional. E vai mesmo ser secretário-geral das Nações Unidas.
  • Denis Balibouse/Reuters
13 Outubro 2016, 16h40

Quando António Guterres, então primeiro-ministro, perdeu as eleições legislativas de dezembro de 2001 e decidiu ir-se embora para que o país não caísse num pântano político, segundo as suas próprias palavras, o país percebeu que estava a divorciar-se do líder socialista por um longo período: aquilo que dele era publicamente conhecido indicava que se retiraria para o silêncio – ao invés de correr para as sedes das estações televisivas e tornar-se comentador especialista em praticamente tudo.

Nos quatro anos seguintes, António Guterres remeteu-se a um silêncio rigoroso e o país foi-se esquecendo dele. Até  que, em 2005, foi nomeado para o cargo de Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados.

Era, de alguma forma, o regresso de Guterres ao lugar onde tinha começado: a Juventude Universitária Católica, por onde andou nos últimos anos da ditadura e onde privou, entre alguns outros, com Marcelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República, a antiga primeira-ministra Lurdes Pintasilgo e o padre Vítor Melícias.

Foi por isso com algum espanto que os amigos o viram aderir, ainda em 1973, a um partido profundamente republicano e tremendamente agnóstico, o Partido Socialista – na altura muito recentemente criado – como se o jovem engenheiro electrotécnico tivesse acabado por dar um passo em falso.

A sua ascensão a secretário-geral do PS em 1992 tomou muita gente de surpresa: a ala esquerda tinha reservas face a um social-democrata tão próximo da democracia cristã (ou, pelo menos, da doutrina social da igreja) e à direita criticavam-lhe os excessos de diálogo e a consequente dificuldade de decisão.

Os anos como primeiro-ministro não foram fáceis e Guterres – que teve de cumprir o calvário dos compromissos ‘esquisitos’, como foram os casos mais emblemáticos do Orçamento Limiano e do primeiro referendo sobre a despenalização do aborto –  foi perdendo a chama que o tinha motivado a dirigir um governo e, pura e simplesmente, desistiu.

Para os que lhe eram próximos, foi uma das poucas vezes em que Guterres colocou acima de tudo os seus próprios interesses: desencantado com os avatares da política interna e farto das escaramuças que agitavam o seu próprio partido, considerou que ir embora era o mais saudável para si.

A partir de 2005, os portugueses voltaram a habituar-se à presença de António Guterres e uma grande maioria deles achou que o divórcio estava mesmo a chegar ao fim, com a sua candidatura à Presidência da República. Quando o próprio disse que não seria candidato – ainda muito antes das eleições – os portugueses, que entendem destas coisas, ficaram convencidos que Guterres seria o Presidente da República que se seguiria. Marcelo Rebelo de Sousa, que já se via a ser entronizado no mais alto cadeirão da Nação, acreditou no velho amigo e não se preocupou mais com o assunto.

Dez anos depois de assumir as funções na ONU, a notícia de que Guterres concorreria a secretário-geral das Nações Unidas acabou por ser observada como uma decorrência do excelente trabalho que realizou – nem as ONG mais aguerridas têm queixas substanciais a apresentar sobre aquilo que o antigo primeiro-ministro português conseguiu nessa década. A sua brilhante prestação nas audições públicas para a eleição do próximo secretário-geral teve a força suficiente para agregar atrás de si todo o país – algo que nem Durão Barroso esteve muito longe de conseguir quando foi liderar a Comissão Europeia.

E de repente Kristalina Georgieva. E Angela Merkel outra vez e os russos e tudo isso: mais uma vez, alguém que era para todo o planeta o mais capaz de dirigir a ONU com dignidade, iria ser vítima de movimentações de última hora com objetivos escondidos. Afinal, isso não sucedeu: como António Guterres acredita, alguém conseguiu, ao menos desta vez, escrever direito por linhas que estavam claramente tortas

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