Não pretendo ser, nem sou, dos comentadores genéricos, com opinião fácil e rápida, sobre todos os temas. Duas semanas depois da invasão já todos sabem tudo sobre Putin, a Rússia e a Ucrânia e muitos já refizeram apressadamente os pontos de análise militar e geopolítica. Pessoalmente, vejo a minha participação no debate público como um contributo cívico para um melhor entendimento da situação.

Até ao momento, neste conflito, foram poucas as coisas que me surpreenderam e que de alguma forma não enquadrei, como poderão constatar pelas minhas intervenções públicas e pelo que fui escrevendo, em colunas anteriores, antes do conflito e no início do mesmo.

Muito do que aconteceu, e do que está a acontecer, estava bem visível para quem acompanhou esta temática nas últimas duas décadas. Tenho assumido sempre uma atitude algo cética, e até pessimista, face ao potencial da situação descambar, atendendo aos objetivos, estado e características do agressor – uma leitura que não se alterou.

Esta Rússia, se puder, quer muito mais do que a Ucrânia. No pensamento de Putin está um jogo mais alargado. Por esse motivo, sempre afirmei que era fundamental que a comunidade internacional se unisse de modo a forçar a sua paragem na Ucrânia.

No entanto, por mais que analise os dados da evolução militar dos últimos 20 dias não consigo tirar outra conclusão se não a de que estamos a chegar a um impasse… a um momento em que a Rússia está a perder o impulso ou iniciativa estratégica. Os sinais disso são muitos, diretos (no teatro de operações) e indiretos (no processo negocial em curso e na forma de comunicar).

Sei que pode parecer wishful thinking mas não é, simplesmente porque é cenário que todos devemos temer e não desejar.

A Rússia terá projetado cerca de um quarto da sua força militar total, o que deverá corresponder a perto da sua capacidade máxima de projeção de forças. Não quero com isto dizer que a Rússia não tem mais forças disponíveis, quero dizer que essas estão adstritas à imensidade de missões de segurança e defesa de um território como o da Rússia e que só poderiam ser deslocadas para a Ucrânia se abdicassem ou reduzissem esses outros objetivos e missões.

Essas forças foram projetadas não para um local remoto do mundo, mas para um teatro de operações que conhecem muito bem, com o qual têm continuidade territorial, que é favorável ao exército terrestre e ao uso de blindados (estrutura principal das capacidades militares russas), que tem características ideais para a condução de operações especiais, de ações encobertas e de operações de guerra psicológica, um teatro de operações onde até parece disporem de colaboradores entre os locais.

Acresce que é um conflito em que escolheram o momento para o ataque e dispuseram do tempo que entenderam para o planear e recolher a informação necessária.

Para além da enorme dimensão das forças projetadas, a Rússia vinha de um processo de modernização e reequipamento das suas forças e possuía, à partida, uma enorme vantagem posicional, atendendo à disposição de forças em torno das forças armadas ucranianas, e uma supremacia numérica de meios aéreos e navais, relativamente à Ucrânia.

Sem querer, de todo, relativizar, nem a capacidade militar, sobretudo a fantástica tenacidade e vontade nacional em resistir da Ucrânia, parece já claro a todos os analistas aquilo que suspeitei logo no final da primeira semana do conflito, sobre as dificuldades na capacidade de combate do exército russo e a persistência de deficiências históricas no que respeita à sua capacidade logística e de organização (a que se soma o baixa moral).

Claro que a incapacidade constatada em assegurar uma vitória rápida e convincente, bem como as dificuldades óbvias de progressão verificada nos últimos 15 dias, levou à adoção de um plano B assente em progressões mais apoiadas das suas forças e na estratégia de cerco e bombardeamento das principais cidades, evitando as rápidas progressões que poderiam expor ainda mais a sua retaguarda a ataques do inimigo e que criou às forças russas enormes problemas de logística.

Em linguagem náutica diria que a maré russa tem estado numa enchente, estando agora a abrandar ao aproximar-se o momento do estofo, o estofo da maré, i.e. o momento em que as águas param e as correntes não fluem num sentido ou noutro. Claro que, neste final de enchente, muito pode ainda acontecer.

Decisiva será a batalha de Kiev e a resistência de outras cidades, como Mikolaiv e as cidades mártires de Kharkov e Mariupol. Aliás, a perda de Kiev pode comprometer seriamente a resistência e a posição ucranianas. As forças russas não são suficientes para cercar a cidade e atacá-la em diversas frentes, até porque teriam as forças ucranianas dentro da cidade e na sua retaguarda.

Ficam duas opções. Um ataque concentrado num só ponto (spearhead ou schwerpunkt na aceção do General Guderian), ou um cerco e a destruição sistemática, à distância, da cidade. No fundo, o que os russos estão a fazer em Kharkov e Mariupol.

Mas, se tudo correr como até agora com outras cidades importantes sitiadas, e as forças russas não conseguirem conquistar Kiev nos próximos tempos, a seguir à maré cheia virá outra maré, uma maré contrária, uma vazante para a Rússia.

O presidente Putin tem atenuado, nos últimos dias, a sua retórica bélica agressiva. A isto não será estranha a enorme dificuldade que as forças russas enfrentam no teatro de operações, bem como os efeitos das sanções ao seu país.

Diversas intervenções, como a mais recente do Papa Francisco, apelando à paz e constatando os danos que estão a ser infligidos às populações civis, podem ajudar a atenuar e a conter reações excessivas da Rússia. Muito embora nos recordemos sempre da blague de  Estaline a Pierre Laval, perguntando quantas divisões comandava o Papa, a sua autoridade moral, até junto do Kremlin, tem um impacto que não é despiciendo.

Mas é esse momento de vazante que me preocupa. Tê-lo-emos dentro de dias, quando percebermos o que irá suceder em Kiev. Nesse momento, ou Putin negoceia em perda, o que pode ser muito difícil atendendo às suas características, ou perde.