Poucas cidades como Istambul podem gabar-se das camadas de diversidade cultural que nela se acumulam. Outrora conhecida como Constantinopla, a capital do Império Otomano, fez também parte dos Impérios Romano e Bizantino e do fugaz Império Latino-Cristão. Até que, em 1453, a cidade dos césares sucumbiu, por fim, às investidas dos poderosos turcos nómadas (turcomanos) oriundos da Ásia Central, recém-convertidos ao Islamismo, e escorraçados dos seus territórios pelas invasões mongóis no séc. XIII.

Este breve contexto histórico sobre as origens do Império Otomano no séc. XIII pode parecer irrelevante nos dias de hoje, mas regista atualmente um curioso “revival” através de uma série televisiva turca de nome “Ertugrul”, o pai de Osmã I, fundador da dinastia otomana. Divulgada internacionalmente pela Netflix e comparada ao sucesso de “A Guerra dos Tronos”, enaltece a epopeia dos guerreiros muçulmanos que conseguiram derrubar o que restava da antiga glória romana e bizantina.

O sucesso de “Ertugrul” cresceu além-fronteiras e tornou-se um fenómeno não só na Turquia e Médio Oriente, mas também na índia. Este fenómeno de romantização das origens não é novo e favorece a agenda política da atual liderança turca. A série ganha força numa altura em que Erdogan sofre contestação interna e as suas ações políticas têm agravado tensões com vizinhos – o apoio à Irmandade Muçulmana, o bombardeamento dos curdos na Síria, as constantes chantagens com a Europa em torno dos refugiados sírios, só para mencionar alguns exemplos – conduzindo a uma quebra de popularidade. A qual pode ter sido agora revertida, entre o seu eleitorado, com a decisão populista e simbólica de converter a basílica de Santa Sofia (museu desde 1934) numa mesquita.

A política islamista de Erdogan, que tem vindo a apagar gradualmente a herança secular do fundador da Turquia moderna, Kemal Atatürk, não é mais do que uma tentativa de reescrever uma narrativa em que se projeta como sucessor dos antigos sultões otomanos, e um dos líderes e governantes do mundo muçulmano.

Mas que importância religiosa tem Hagia Sophia para os muçulmanos? Ao contrário de importantes locais de veneração como Meca, Medina ou Jerusalém, a antiga basílica tornou-se um despojo de guerra que depois foi convertido de forma pragmática pelos novos governantes otomanos. No entanto, para o mundo cristão é um dos locais de veneração desde a sua construção no séc. VI. Nos mais de mil anos que antecederam a chegada dos líderes turcomanos foi palco de missas e cerimónias, e albergou relíquias de santos e mártires e belas peças de arte do Cristianismo. Agora, esses mosaicos bizantinos têm de ser cobertos e ocultos nas orações de sexta-feira.

Já visitei o esplendor de Santa Sofia e contemplei a sua presença dominante sobre a cidade de Istambul. É incontornável. Hoje tornou-se um peão nas mãos de lideranças fracas e megalómanas, mas a História daquela região não é mais do que um desfilar ininterrupto de conquistadores que vão e vêm. E por maiores que tenham sido as suas glórias, esses líderes dissolveram-se nos grãos de areia do tempo, enquanto os monumentos que foram erigidos permanecem como testemunhas perenes.