O mundo ocidental vive há anos indignado com a postura dos EUA em relação às alterações climáticas, que classifica de completo desrespeito. Os dedos têm apontado atuações como a recusa de George W. Bush em seguir o protocolo de Quioto ou a animosidade de Donald Trump face ao acordo de Paris. Na sua arrogância, os líderes americanos têm ignorado os juízos externos e prosseguido as políticas que consideram ser mais benéficas à sua economia.
Foi com a mesma presunção que, em agosto de 2022, Joe Biden revelou uma inflexão da política ambiental americana a ser concretizada através de um gigantesco projeto de investimentos.
Com as roupagens de um plano de recuperação económica, o Inflation Reduction Act pretende reduzir as emissões domésticas de gases com efeito de estufa, melhorar cuidados de saúde e simultaneamente aumentar as receitas fiscais norte-americanas.
A proposta, discutida na passada semana em Davos, foi, no entanto, recebida como um exercício de protecionismo por aquele que, pela sua condição de líder mundial, se tem assumido como o bastião da globalização. Os apoios a conceder pelo governo americano são tão desmesurados que contrariam os princípios acordados no âmbito dos acordos de comércio internacional. A imprensa não resistiu assim a passar à ideia de que poderá estar iminente o regresso a uma guerra comercial.
Ursula van der Leyen reagiu à proposta, sugerindo a constituição de um fundo soberano europeu para agregar recursos destinados a fomentar a inovação, a investigação e projetos industriais ecológicos, defendendo que a Europa siga o mesmo tipo de políticas intervencionistas. Já Fatih Birol, o diretor executivo da Agência Internacional de Energia, aplaudiu a decisão americana, satisfeito com a promessa de convergência para energias mais limpas.
O contrassenso que caracteriza esta história transforma-a numa tragicomédia – enquanto aqueles que, há pelo menos duas décadas, pressionam os EUA a adotar políticas ambientais alinhadas com os desígnios do mundo ocidental se mostram profundamente irritados com esta decisão, os intervenientes no World Economic Forum, que nos têm habituado à condenação veemente de qualquer prática que se assemelhe a uma barreira ao liberalismo, não conseguem esconder o seu entusiasmo pela mesma.
Não é à toa que Martin Wolf na sua coluna no “Financial Times” tem insistido na ideia de que a globalização não está em perigo, escrevendo artigo atrás de artigo a procurar demonstrá-lo, como se a querer convencer os seus leitores do trabalho que é preciso desenvolver para que o seu anseio possa corresponder à realidade. A revista “The Economist”, igualmente influente, revela-se menos otimista, classificando a intervenção americana como uma ameaça à globalização, que resultará num jogo de soma nula.
E enquanto o mundo se distrai com a iminência de uma guerra sem vencedores nem vencidos, duas das suas grandes potências económicas, os EUA e a Europa, combatem o socialismo de mercado chinês com uma política orçamental e fiscal gigantesca, escudada nas preocupações com o clima e legitimando-a num momento em que pareceria impossível – quando, ao receio da dívida pública, se junta o pavor da inflação.
Que astros se poderão ter conjugado para tão improvável resultado?
Que me perdoe Pessoa, mas Deus quer, os EUA sonham e a intervenção nasce.