O sector farmacêutico é uma indústria crucial para o desenvolvimento, produção e distribuição de medicamentos e terapêuticas vitais para a manutenção e melhoria contínua da saúde pública. Saúde pública essa que, em retorno, poupa milhares de milhões de euros por ano aos Estados. Ao longo dos últimos anos, a indústria tem vindo a atravessar crescentes e aceleradas transformações, alimentadas por avanços científicos e tecnológicos, mas o papel das políticas regulatórias começa a pesar cada vez mais na mente dos decisores, sobretudo quanto ao rumo do investimento futuro. A somar a isto, nunca a procura por serviços e produtos de saúde foi tão elevada. Volvida uma pandemia, o sector está numa posição muito diferente e, para uns, até vantajosa. Mas não garantida, importa recordar.
A indústria a nível global gera mais de 1,3 biliões de euros todos os anos – um valor que diz respeito a diferentes segmentos, desde as tradicionais farmacêuticas às firmas biotecnológicas, que ganham acrescida relevância.
E se a indústria é uma locomotiva que não abranda o ritmo, a Investigação & Desenvolvimento (I&D) são o vapor que a fazem andar. O sector investe dezenas de milhares de milhões de dólares todos os anos na investigação e desenvolvimento de novas moléculas, fármacos e terapêuticas. A esmagadora maioria pode até nem sair do papel, mas tenta-se. O processo até chegar às farmácias ou ambientes hospitalares pode levar anos, muitas vezes décadas. Mas aí, será hora de rentabilizar o investimento, antes que a patente se esgote. Feito o retrato, há que entender que esta indústria encara um cenário quase inédito: depois de uma pandemia que implicou a concentração de esforços e capitais como nunca antes se viu, farmacêuticas e associações do sector ouvidas pelo Jornal Económico denunciam uma realidade tenebrosa, causada por barreiras regulatórias e estatais e desafios que não se encaram com leveza. Afinal, como dizem, o medicamento tem um valor social e um valor económico, na medida em que o bem-estar geral da população se reflete (e de que forma) na economia real
“Há que ter em conta o impacto da inovação terapêutica na sociedade, sendo o medicamento um dos maiores responsáveis pelo aumento da esperança de vida e pela melhoria da sua qualidade”, refere um representante de um dos maiores laboratórios a nível mundial ao JE. Em Portugal, e considerando apenas oito das doenças mais prevalentes, a inovação nos fármacos adicionou dois milhões de anos de vida saudável desde 1990. Isto significa, na prática, que a inovação no sector evitou mais de 110 mil mortes e contribuiu para o aumento da esperança média de vida em até dez anos. As conclusões são do estudo “O Valor do Medicamento em Portugal”, elaborado pela Apifarma e pela McKinsey. Além disto, há que contabilizar o efeito direto económico de uma boa saúde: contas do mesmo relatório apontam para que os fármacos inovadores tenham permitido aos pacientes retomar a produtividade mais depressa, nomeadamente reduzindo o tempo de hospitalização e outros custos de contexto, o que gera cerca de 280 milhões de euros por ano em rendimento disponível adicional. Isto é, uma média de 1.000 euros por mês, por família.
Assim, é inegável que o sector farmacêutico tem não só um papel social como económico na conjuntura nacional e global. Papel esse que a indústria diz ser demasiado importante para o “desinvestimento crónico” por parte do Estado.
Todos os líderes de sector consultados pelo JE alertam para a dificuldade de acesso dos doentes portugueses à medicação inovadora. O atraso, referem, é “muito tardio comparativamente” a outros países europeus. As conclusões do relatório “WAIT Indicator 2021”, da EFPIA, mostram que os portugueses aguardam em média quase dois anos para terem acesso a novos remédios. O cenário é ainda mais drástico na oncologia, onde a espera ultrapassa os 753 dias.
E num contexto de pós-pandemia, que veio entortar as projeções de crescimento das farmacêuticas [ver texto ao lado], somam-se os abalos introduzidos pelo conflito em solo europeu. A invasão russa da Ucrânia gerou um processo inflacionário mundial e uma crise energética que o sector sentiu de imediato.
“Enfrentamos aumentos nos custos de inputs de produção de medicamentos, num mercado de preços altamente regulado”, diz outra fonte do sector ao JE. “Tendo em conta a situação atual, é recomendável alguma estabilidade normativa no campo do do regime de preços dos medicamentos e é necessário acomodar os aumentos de preços para cobrir a inflação dos inputs da Indústria Farmacêutica”, acrescenta, ressalvando que só dessa forma será possível “garantir a melhor disponibilidade de medicamentos e a mitigação de ruturas”.
Depois de 2022, que foi um ano marcado por profundas debilidades nas cadeias de abastecimento e pela conjuntura inflacionária, outro líder de uma empresa farmacêutica assinala um aumento de custos, dentro da indústria, na ordem dos 15% a 20%, que “foi totalmente absorvido” pelas empresas.
Esta mesma fonte aponta o dedo ao Infarmed para criticar o novo regime de avaliação da inovação e acesso ao mercado que, na sua opinião, “reforça o processo de aprovação de novos medicamentos pouco transparente, com uma seleção de comparadores impossível e pedido de informação clínica impossível de obter”. Além disso, os já mencionados contratos de avaliação prévia e de comparticipação (CAP) dos medicamentos inovadores “não são revistos” e encontram-se desatualizados, refere. O sector acredita estar perante um “nível de incerteza cada vez mais inaceitável para as empresas”, mas nem tudo é uma tempestade.
Há oportunidades concretas de revitalização dos negócios farmacêuticos no país, nomeadamente e mais imediatamente, através das agendas mobilizadoras do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). As prioridades devem estar centradas na reindustrialização, mencionam alguns gestores, desde logo para reduzir a sobredependência externa, tanto em matéria-prima como em fabrico.
Também a tecnologia surge com promessas cativantes dentro do sector, com a utilização inteligente de dados a permitir a interoperabilidade e a análise decorrente da I&D. Promessas mais longíquas, mas igualmente entusiasmantes, desvendam um futuro onde os fármacos serão feitos à medida das nossas necessidades biológicas. O potencial para isso existe, garantem os responsáveis da indústria. Existe também o conhecimento e o talento necessário, mas falta infraestrutura, investimento e um foco nacional nesse sentido que passa, obrigatioriamente, pela simplificação regulatória.