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Investimento em canábis afinal era esquema. “Perdi 100 mil euros. Para mim, isso são 15 vidas”

Há um novo esquema nascido nas redes sociais com ramificações em Portugal. A JuicyFields prometia lucros elevados a quem investisse em plantas de canábis para fins medicinais, mas as retiradas de ganhos foram congeladas, as contas apagadas e os responsáveis desapareceram. Em Portugal haverá já cerca de cinco mil lesados e milhões de euros perdidos. Um só investidor terá perdido 11 milhões.
22 Julho 2022, 20h14

Acumulam-se os lesados naquele que se veio a revelar como o mais recente esquema Ponzi à escala global, com ramificações em Portugal. A JuicyFields, plataforma que incentivava ao investimento para alegadamente cultivar canábis num modelo de crowd-growing (agricultura colaborativa), implodiu nos últimos dias e os responsáveis, bem como o dinheiro, desapareceram sem deixar rasto. Para trás ficam milhares de investidores de mãos a abanar e imensas questões sem resposta, nomeadamente sobre o que acontecerá daqui para a frente.

Os avisos existiam, para quem estivesse atento, mas nem os alertas dos reguladores alemães e espanhóis foram suficientes para arrefecer o interesse dos investidores. Nos últimos meses, a tomada de posse de um novo CEO, uma série de alegadas aquisições e uma suposta greve de funcionários que deixou a plataforma inoperacional foram os primeiros indícios de que a JuicyFields estaria a tomar um rumo diferente daquele a que foi habituando os seus investidores ao longo dos últimos anos.

O cenário atual, avançado pelo jornal espanhol El Diário, aponta de forma inequívoca para uma fraude milionária que em Portugal, segundo o que JE conseguiu apurar, já terá lesado cerca de cinco mil investidores e que terá até ligações a empresas que receberam fundos comunitários.

O que prometia a JuicyFields?

O franco e sustentado crescimento do sector da canábis, em virtude de várias reformas legais em todo o mundo ao longo dos últimos anos, bem como a promessa de rentabilidades elevadas solidificou a proposta de investimento que a empresa fazia aos seus utilizadores, numa abordagem que tipicamente era feita pelas redes sociais, como o TikTok e YouTube.

Aqui, centenas de ‘influenciadores’ pagos pela JuicyFields mostravam como seria possível obter lucros de até 66% em apenas 108 dias. A premissa era simples: os utilizadores investiam num número de plantas e receberiam depois os lucros da venda dessas plantas, que seriam utilizadas para a produção de canábis para uso medicinal ou outros produtos com efeitos terapêuticos.

Foi no TikTok que Ricardo (nome fictício), de 47 anos, teve o primeiro contacto com a empresa, no final de 2020. No vídeo, explicavam-lhe que o seu investimento “estaria a ajudar a indústria e quem precisava de tratamentos”.

“Isso fez-nos sentir interesse em contribuir, porque eram precisas plantas para ir para a indústria. Era isso que nos fazia andar: levar a comunidade a chegar onde era preciso”, conta ao Jornal Económico. O primeiro investimento foi feito “logo, no dia a seguir”, depois de uma extensa pesquisa sobre a empresa e comprovada a legitimidade dos parceiros que apareciam no site — alguns, como revela a investigação do programa ‘Prova dos Factos’ (RTP), desconheciam que as suas marcas estavam a ser referenciadas pela JuicyFields.

Num dos primeiros investimentos, Ricardo deixou mais de 1.500 euros na plataforma, “mas passadas duas semanas estava a meter dinheiro outra vez”. Investir ou perder? O empresário – que admite ter criado contas na JuicyFields para a mulher, pai e filha – explica que tudo o que lhe mostraram “era real”. Ao todo, a família perdeu mais de 100 mil euros.

“O que eu retirei foi irrisório; de uma vez, cerca de oito mil euros e 1.800 de outra vez. A ideia era chegar ao escalão máximo, que seriam 1.190 plantas, o que nos iria permitir retirar cerca de 25 mil euros de três em três meses, o suficiente para entrar numa plena reforma e ter um fundo de garantia para a família.”

“Eu perdi 100 mil euros. Para mim e para a minha dimensão, isso são 15 vidas”, diz o empresário que espera ainda “reaver parte” do dinheiro perdido. “Eu vendi uma casa, (…) IRS, subsídios de férias… Tudo o que tínhamos foi para lá. Claro que impactou a minha estabilidade financeira e familiar. Todos os meus sonhos estavam ali, tudo o que eu tinha”, reforça.

Ricardo foi aliciado pela aparente legitimidade do negócio. Chegou a ir ao Porto, à Cannadouro [feira de canábis], e a cada semana “recebia uma newsletter a dizer ‘as vossas plantas estão a crescer, frescas e fofas e está tudo a correr bem, continuem a investir’. Era uma empresa no Algarve, com sede em Coimbra, com vídeos, fotos, webcams, tudo a funcionar. Eles existiam. Víamos lá os apoios do governo, da comunidade europeia. Estes senhores apareceram na Forbes, com toda a explicação de quem eram, onde estavam e o dinheiro que tinham”, sublinha.

“A JuicyFields não tinha uma única planta própria”

De forma a legitimar as operações e ganhar a confiança destes investidores, a JuicyFields terá mantido uma estratégia de comunicação e publicidade consistente. Realizava feiras internacionais, patrocinava exposições e eventos e chegou, mais do que uma vez, a ser tema da revista Forbes.

Já Fernando, de 23 anos, que também pede para não ser identificado, conta ao JE que a título pessoal investiu mais de 294 mil euros na plataforma, mas que a sociedade que criou com seis outros utilizadores para potenciar lucros terá investido cerca de um milhão de euros. “Entrámos nisto porque já nos conhecíamos de outras andanças, do Telegram e do YouTube. Alguns são pessoas que estão bastante tempo em casa”, explica o jovem lesado.

“Por cada planta que comprávamos tínhamos um lucro de 23 a 30% – pessoalmente nunca as vi, nem ninguém viu, tirando meia dúzia de pessoas que entraram na Sabores Púrpura. Mas foram ver plantas de outros negócios”, acusa. “A JuicyFields não tinha uma única planta própria.”

Tanto Ricardo como Fernando dizem ao JE que o número de utilizadores lesados em Portugal deverá ultrapassar os cinco mil. Fernando garante que um só utilizador português, com 34 contas criadas na plataformas, terá investido perto de 11 milhões de euros. As contas terão sido criadas “em nome dos filhos, dos primos, dos avós, dos pais”, explica.

“A JuicyFields permitia que isto acontecesse. Há aqui pessoas que têm empresas de camiões, há jogadores de futebol, há de tudo um pouco. Há pessoas que metiam 250 euros por mês, há dois anos. Há quem metesse 100 euros por semana, há dois anos”, conta.

Foi ao longo da última semana que se tornou claro para os investidores portugueses que poderiam estar perante um esquema fraudulento. Depois de, em junho, o ex-CEO Alan Glanse dar lugar a Willem van der Merwe, uma série de acontecimentos atípicos e sem precedentes levaram a que fosse impossível movimentar e retirar dinheiro da plataforma. De seguida, veio um aviso de uma alegada greve, que estaria a impedir as operações de apoio ao cliente e de comunicação. Pouco depois, o site ficava em baixo. O novo CEO dizia que era “apenas uma situação pontual”.

Seguiu-se a tempestade. Uma maré de vídeos, esclarecimentos, desmentidos e contra-informações começaram a circular nos vários grupos de Telegram que a empresa mantinha e noutros geridos por grupos de investidores. Este era o principal meio de contacto entre os investidores e os responsáveis da JuicyFields. É num desses grupos, a que o Jornal Económico teve acesso, que começam a surgir comunicados alegadamente emitidos por vários parceiros da empresa.

Imagem das alegadas estufas da Sabores Púrpura, partilhada pela JuicyFields no Twitter

 

Ligações a Portugal

Um deles pertence à empresa portuguesa Sabores Púrpura, liderada pelo empresário Miguel Silva, e encontra-se afixado no site oficial da organização. No documento, a Sabores Púrpura defende-se dizendo que é “totalmente alheia” à atividade da JuicyFields e reforça que o vínculo era “meramente comercial (…), não tendo tido qualquer suspeito em relação às atividades ilícitas e fraudulentas de que a JuicyFields está a ser agora acusada”.

A empresa, sediada em Coimbra e com operações no Algarve, terá recebido fundos do Portugal2020 e terá até constituído mais três empresas como ex-CEO, Alan Glanse. Os investidores ouvidos pelo Jornal Económico apontam responsabilidades ao empresário Miguel Silva, que à data da publicação deste artigo não respondeu aos pedidos de contacto do jornal.

Fernando revela que entrou no negócio através de Miguel Silva. “Houve quem o conhecesse pessoalmente, eu não conhecia. Foram até Tavira e o Miguel fez questão de explicar o que se estava a fazer e as coisas pareciam reais”, diz. Desde o rebentar da bolha que tem sido praticamente impossível contactar com a empresa ou com o empresário que, numa mensagem trocada no WhatsApp a que o JE teve acesso, admite também ele próprio ter sido enganado. Seguiu-se o silêncio para com os investidores.

Das somas mais maiúsculas de Ricardo e de Fernando aos modestos mil euros de Pedro Sousa. O médico de 35 anos, natural do Porto, conta ao JE que entrou na plataforma em março deste ano, incentivado “pelo aconselhamento de conhecidos que tinham investido”. Falharam-lhe do negócio e fez umas pesquisas. “Parecia tudo legítimo”, garante.

“Investi mil euros, não foi uma grande quantia. Não reavi nada. Tudo perdido”, assume, explicando que não tem “grande esperança” de reaver a soma, até porque todo o dinheiro que investiu era dinheiro que se podia dar ao luxo de perder. “É a lógica dos investimentos”, recorda.

Os pagamentos à plataforma eram feitos ou por transferência bancária ou, mais frequentemente, em criptomoedas. “Era o método preferencial de muita gente, porque é mais fácil esconder tudo, apesar de ser uma plataforma pública e aberta, fiscalizada uns pelos outros”. Ou seja, na blockchain.

Quanto a queixas formais junto das autoridades judiciárias, esse parece ser o próximo passo lógico para estes e outros milhares de investidores portugueses. Ricardo e Fernando admitem que já avançaram com denúncias ao Centro Nacional de Cibersegurança e ao Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP), como comprovou o JE. Pedro Sousa ainda o vai fazer, não numa esperança de recuperar o investimento, mas de “trazer à justiça estes indivíduos”.

E que indivíduos são esses? Além do ex-CEO, Alan Glanse, que falou à RTP esta sexta-feira, saltam à vista os nomes do novo CEO, Willem van der Merwe, e de Zvezda Lauric, a porta-voz e cara da JuicyFields nas redes sociais e em diversos eventos. Também surgiu online um vídeo da alegada CFO, Birgit-Elisabeth Neumann. Pedro Sousa garante que a parte “mais fidedigna” do negócio estava associada a três ou quatro pessoas “de nacionalidade russa”.

Número de esquemas semelhantes continua a aumentar

A Comissão dos Mercados de Valores Mobiliários (CMVM) veio esclarecer o JE esta sexta-feira que a JuicyFields “não é uma entidade autorizada ou registada junto da CMVM para o exercício da atividade de intermediação financeira ou para o exercício de outras atividades sujeitas a autorização da CMVM”. A entidade diz ainda que, até ao momento, “não recebeu pedidos de esclarecimento, reclamações ou denúncias por parte de investidores em relação à JuicyFields”.

Na nota enviada, o regulador português sublinha que tem vindo a alertar para um “número relevante de propostas apresentadas a investidores para investimentos em entidades ou produtos que não estão sob a sua supervisão (ou de outra entidade supervisora)” e explica que, nestes casos, os investidores “não só não têm qualquer tipo de proteção dos supervisores como estão expostos a riscos elevados de fraudes e burlas”.

“A crescente digitalização do investimento contribuiu para o aumento desses riscos, o que levou a CMVM a reforçar a informação prestada aos investidores sobre os cuidados a ter antes de investir, nomeadamente através do lançamento de uma brochura sobre fraude digital”, acrescenta, recordando que a competência de supervisão tem limite de atuação à jurisdição portuguesa e alerta os potenciais lesados de que estes casos de fraude “não se encontram no perímetro de atuação da CMVM, devendo ser comunicados às autoridades judiciárias”.

A Juicy Holdings B.V., registada na Holanda, detinha o registo da marca JuicyFields através do representante Braschi AG, uma empresa sediada em Zurique (Suíça). A holding tinha sido já notificada pelo regulador financeiro alemão (BaFin) por não ter sido publicado um prospeto de venda aprovado por esse regulador para a oferta pública dos investimentos que a empresa dizia oferecer. Também a homóloga espanhola da CMVM tinha emitido avisos. A empresa encerrou a sua atividade esta sexta-feira, segundo apurou o JE.

Para já, em Portugal, a comunidade de investidores que se organiza no Telegram criou uma pasta no Google Drive onde partilha formulários de documentos para que os lesados possam avançar com denúncias formais junto das autoridades.

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