Numa altura em que a AR aprovou a Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril que prevê a libertação de cerca de 2.000 reclusos e que fará face (e bem) ao iminente perigo de propagação e contágio que se vive nos estabelecimentos prisionais fruto da pandemia que atravessamos, observamos, com alguma ironia, que o crime de propagação de doença contagiosa que se aplica aos infetados que violem a quarentena e o dever de confinamento imposto e devido, poderá, no limite, contrariar a intenção de esvaziar os estabelecimentos prisionais se aos infratores for aplicada a medida de coação prisão preventiva que é permitida pela sua moldura penal (um a oito anos de prisão no caso de dolo, até cinco anos no caso de negligência).

Sendo um crime de perigo abstrato, não é exigível a verificação de um perigo concreto para um número (in)determinado de pessoas, bastando a simples possibilidade de criação de perigo para outrem, o que se verifica, naturalmente, quando o infetado sai à rua, e que imporá dura resposta das autoridades.

Dando corpo ao regime excecional de flexibilização da execução das penas e medidas de graça, encontramos no artigo 7.º da Lei o destino a dar ao universo dos presos preventivos. Mas, só aparentemente, pois este nada diz. Tenho a convicção que foram relativamente esquecidos – terá sido um problema de complexidade legislativa? Ou foi para evitar o incremento do número de reclusos a libertar? Enxertou-se no diploma uma banalidade: que a prisão preventiva só se aplique quando as outras medidas forem insuficientes! (Em abono da verdade, nunca é demais dizê-lo…).

Estatuindo-se assim, simploriamente, o destino daqueles que sem decisão transitada em julgado enfrentam o processo penal com privação da liberdade, como estabelecer a libertação de condenados por determinados tipos de crimes sem equacionar, pelo menos, o mesmo quadro legal para os presos preventivos, em ordem ao princípio da presunção da inocência?

Sobretudo quando – por comparação com reclusos que permanecerão nos Estabelecimentos Prisionais por bem menos – os agentes do SEF que, alegadamente, cometeram um crime de homicídio sobre o cidadão ucraniano estão no remanso dos seus lares, a pretexto do perigo de contágio da pandemia causada pela covid-19…

Ainda a propósito de presos preventivos – e apesar do coronavírus dominar a atualidade (e ter moldado a vida dos tribunais bem como o ritmo dos prazos, atos e procedimentos judiciais) – não silenciemos a nossa capacidade crítica perante decisões judiciais proferidas em processos urgentes, “outrora” mediáticos. O respeito pelos princípios gerais do processo penal deve manter-se também em tempos de emergência e as decisões devem fundamentar e conduzir a investigações legais e isentas. Impõe-se, pois, e sempre, que estas (decisões e investigações) sejam – o tempo o dirá – como a mulher de César… é que não basta ser séria, é preciso parecer.