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Jorge Coelho: “Quando era miúdo o meu avô comprava queijos da Serra e depois ia a Lisboa vendê-los”

O político e ex-governante passava dois dias por semana em Mangualde, a terra que nunca deixou. Morreu esta quarta-feira, mas o seu percurso – e os seus queijos – continuarão a ser uma referência. Histórias que partilhou com o Jornal Económico em março de 2017, na Serra.
7 Abril 2021, 19h57

Artigo publicado originalmente no caderno Et Cetera do Jornal Económico a 3 de fevereiro de 2017. O JE volta a publicar esta reportagem e entrevista a 7 de abril de 2021, no dia da morte do ex-ministro português.

Jorge Coelho dispensa apresentações: político, gestor, empresário, nunca se livrou de polémicas, muitas vezes porque os críticos entenderam que todas estas áreas se misturaram demasiado. Desde há uns tempos, insistiu em separar mais as águas. E regressou à terra. À Serra da Estrela, de onde veio. De chefe da máquina partidária do PS a ministro Adjunto, da Presidência do Conselho de Ministros, da Administração Interna, bombeiro sempre de serviço nas equipas de António Guterres, ex-primeiro-ministro, Jorge Coelho é reconhecido, essencialmente, como político.

Demitiu-se do governo de Guterres a 4 de março de 2001, na sequência da trágica queda da ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios. Mas passou a sentar-se no Conselho de Estado, sempre sob os holofotes. Demitiu-se em abril de 2008, para regressar a outro tipo de ribalta, com o surpreendente cargo de CEO na maior construtora portuguesa, a Mota-Engil. O que lhe mereceu mais fortes críticas na praça pública. No entanto, o seu desempenho sempre foi elogiado na casa de Amarante, de tal forma que ainda se mantém como presidente do conselho consultivo do grupo da família Mota.

Afastou-se da presidência executiva da construtora quase cinco anos depois de a ter assumido, invocando “razões pessoais”. Na altura, muitos consideraram estranha esta decisão, mas agora percebe-se que Jorge Coelho quis um novo desafio para a sua vida, mais recatado. Mesmo uma espécie de segunda vida.

Sem abandonar o bulício das cidades e adepto do contacto com os populares, um pouco ‘à la Soares’, Coelho decidiu voltar às raízes, à incontornável Serra da Estrela. E, agora, dois dias por semana, pelo menos, passa-os em Mangualde, logo abaixo de Viseu, na sua última criação: a Queijaria Vale da Estrela, produtora certificada de queijo da Serra da Estrela, a primeira do concelho, integrado na região demarcada deste produto DOP – Denominação de Origem Protegida.

Não deixa de vir a Lisboa, principalmente para as gravações do programa televisivo da SIC, ‘Quadratura do Círculo’ [mais tarde na TVI, ‘Circulatura do Quadrado’], mas a sua nova paixão está ali, na serra, com um projeto empresarial que arrancou em novembro e ainda está a dar os primeiros passos. E o sentido desta nova vida de Jorge Coelho não é só por questões financeiras – como qualquer empresário, quer ganhar dinheiro com esta iniciativa –, mas por razões sentimentais e familiares.

“Já tinha uma ideia, há bastante tempo, de desenvolver um projeto aqui na região. Há uns anos estava num evento em Penalva do Castelo, quando várias pessoas me fizeram aperceber que o concelho de Mangualde era o único que estava na região demarcada de produção do queijo da Serra da Estrela que não tinha uma queijaria”, confidencia ao Jornal Económico.

“Mangualde tem produtores de queijo da Serra, mas ninguém tinha ainda desenvolvido um projeto para produzir queijo certificado aqui em Mangualde. E, depois, tenho aqui fortes razões emocionais. Quando era miúdo e tinha cinco ou seis anos, o meu avô comprava queijos da Serra da Estrela, aqui em Mangualde e na zona à volta, e depois tinha uma queijaria onde os acabava de curar. Depois, ia a Lisboa vendê-los às três ou quatro grandes cadeias de distribuição gourmet da altura, como a Jerónimo Martins e o Martins e Costa, assim como aos hotéis de cinco estrelas”, explica Jorge Coelho.

O avô, Raul Abrantes Coelho, calcorreava a Serra da Estrela na sua carrinha Bedford, buzinava para visitar pastores e feiras. Comprava os melhores queijos, levava-os para Contenças, onde Jorge Coelho nasceu. Com mão de mestre, alinhava-os nas prateleiras de madeira, para todos os dias serem cuidadosamente lavados e virados à procura da melhor textura, a contento dos clientes mais requintados.

A isto chama-se um affineur, ou afinador de queijos. O que exigia uma palmada de cada lado do queijo, todos os dias. Jorge Coelho sempre foi um ‘afinador’ nas diversas áreas em que interveio. Embora se duvide que dê palmadas nos queijos que hoje são produzidos na Queijaria Vale da Estrela, quis recuperar a tradição familiar.

O acionista único da novíssima Queijaria Vale da Estrela sublinha que este projeto é um tributo. “É uma homenagem ao meu avô, é um voltar às raízes, é voltar a fazer uma coisa que já vi fazer quando tinha cinco ou seis anos; e é uma tentativa de ajudar a desenvolver a região de Mangualde”, afirma. Não que o concelho de Mangualde esteja deprimido pela longa recessão económica que atravessou o País. Nas faldas da Serra da Estrela, no Interior, este município pode orgulhar-se, como poucos em Portugal, de ter uma atual taxa de desemprego que se fica apenas pelos 5%, quando a generalidade do resto do país se confronta com uma taxa nos dois dígitos.

Talvez também por isso, pelo dinamismo económico de uma região que tem na fabricante de automóveis PSA a maior empregadora, Jorge Coelho decidiu avançar para este projeto. “Foi há dois anos, tudo isto era rocha”, orgulha-se, mostrando a nova Queijaria Vale da Estrela ao Jornal Económico.

No meio do granito e do xisto, há agora cerca de 20 pessoas que antes estavam desempregadas, a maioria mulheres, que se dedicam ao fabrico de requeijão, queijo novo e queijo curado da Serra da Estrela, que só deverá surgir no mercado nacional na Páscoa.

E o projeto está ali para crescer, garante Coelho. Além de querer duplicar a capacidade de processamento de leite de ovelha certificado, a Vale da Estrela vai entrar em breve na produção de compotas e de mel.

As instalações já não cheiram a tinta, o aroma do queijo é bem mais intenso e rico, mas vê-se que está tudo como novo. A queijaria arrancou em novembro e já tem vários galhardetes para apresentar na lapela. Por exemplo, o requeijão esgota todos os dias ainda antes de estar produzido e foi impossível prová-lo.

Apesar de reconhecer que teve muito trabalho para colocar a Queijaria Vale da Estrela em pé em apenas nove meses, superando muita burocracia, exponenciada quando se trata de bens perecíveis, alimentares e de origem certificada, Jorge Coelho é taxativo, como é seu costume: “Não tenho razões de queixa, quer da parte da Administração Central, quer da Administração Local, mas sei que fizemos tudo como devíamos fazer”, diz.

E além do reforço da produção de queijos e da expansão para a área das compotas, a nova empresa está a atacar forte num novo desafio que é a aposta na internacionalização. E talvez por aí, o ex-governante tenha de voltar aos aeroportos e aos aviões, do Brasil à Arábia Saudita, de Espanha à China.

Uma intensidade que o levou a travar no seu vaivém global como CEO da Mota-Engil, mas que, neste momento, poderá ser bem mais suportável, porque Jorge Coelho está agora a correr numa pista própria.

Exportação. Vendas garantidas para o El Corte Inglés e a Arábia Saudita

Jorge Coelho não está neste projeto para perder dinheiro. E uma das grandes apostas passa pelas exportações. A internacionalização da sua empresa começou há poucas semanas com as primeiras vendas para a cadeia espanhola do El Corte Inglés. A seguir, prevêem-se mercados como a Arábia Saudita, numa parceria interessante com a Confeitaria Nacional. China, Las Vegas, Luxemburgo ou São Paulo são outros destinos na mira.

Queijaria Vale da Estrela exigiu um investimento inicial de cerca de 1,8 milhões de euros. O único acionista, é o próprio que o garante, é Jorge Coelho. O projeto arrancou em novembro do ano passado, mas exigiu o recurso a financiamento de entidades externas – a banca –, se bem que em menor escala do que é habitual nestes casos.

“Este projeto tem uma boa saúde financeira. Temos financiamento bancário do Montepio Geral e, desde dezembro de 2015, candidatámo-nos ao quadro de fundos comunitários 2020. Ainda não recebemos qualquer dinheiro daí, mas tenho a certeza de que vamos ser financiados”, explicou Jorge Coelho.

O dono da Queijaria Vale da Estrela esclarece que, neste tipo de projetos de investimento, o normal é que os fundos próprios sejam na ordem dos 30%, quando os restantes 70% derivam de capitais alheios. No caso da sua empresa, este rácio vai ficar entre 35% e 65%, assegura.

Para garantir a colocação dos seus produtos no mercado, Jorge Coelho já estabeleceu acordos com algumas das maiores marcas de distribuição em Portugal – Continente, Pingo Doce, Auchan (Pão de Açúcar) e El Corte Inglés. A faturação prevista para este primeiro ano completo de atividade é de cerca de 500 mil euros.

O ex-governante, agora na pele de um empresário do Interior, avança que os melhores períodos para venda dos queijos da Serra da Estrela são, acima de tudo, o Natal e a Páscoa. A par, também, das feiras de queijos realizadas à razão de duas vezes ao ano em cada uma das grandes superfícies de distribuição a operar em Portugal. Mas o sonho de Jorge Coelho neste novo negócio vai mais além da rotina do mercado: a internacionalização é uma palavra-chave. Há cerca de um mês, quando o Jornal Económico estava presente no local, em Mangualde, a Queijaria Vale da Estrela já estava a expedir os primeiros queijos da Serra da Estrela para o El Corte Inglés, a partir de Madrid, para a Feira Internacional de Produtos Regionais da cadeia de distribuição, em 77 lojas em Espanha. Para começar, são 462 queijos que vão estar nesta montra.

A seguir, além de Espanha, estão na calha novos mercados para exportação, sejam países ou cidades, como a China, Las Vegas, Londres, Luxemburgo, São Paulo ou a mais exótica Arábia Saudita, numa parceria estimulante com a Confeitaria Nacional. “O mercado da saudade [emigrantes] é um dos nossos objetivos, mas também alguns espaços de distribuição de prestígio, como o Harrod’s, em Londres, com quem estamos a negociar”, adianta Jorge Coelho.

“Era um objetivo nosso vender 10% dos queijos para o exterior, uma meta que tem de ir subindo de ano para ano”, assume o dono da Queijaria Vale da Estrela.

E esta é uma meta que deverá ser conseguida se as fasquias de produção da própria queijaria de Jorge Coelho subirem, conforme está orçamentado: “Temos, neste momento, capacidade para processar 600 litros de leite por dia, sete dias por semana, mas o nosso objetivo é chegar ao processamento de 1.500 litros de leite por dia com o atual equipamento”.

Jorge Coelho adianta, no entanto, que a Queijaria Vale da Estrela pode ir ainda mais além na produção de requeijões e de queijos da Serra da Estrela (novos e curados), assim a procura e o financiamento para a expansão garantam a razoabilidade desses investimentos.

Duas centenas de queijos por dia e outros 200 requeijões diários: são números para superar de forma rápida na Queijaria Vale da Estrela. Mas, acima disso, Jorge Coelho quer expandir a atividade dos derivados de lacticínios da sua empresa para a produção de compotas de frutos vermelhos (amoras, morangos, mirtilos), abóbora e mel, entre outros. Algo prometido lá mais para o verão deste ano.

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