1. Nunca percebi porque o Governo português, como aconteceu em vários países do mundo, do Canadá à Nova Zelândia, não fez refletir nos salários de ministros, secretários de Estado, gestores públicos, pelos menos estes, o andamento da crise devida à pandemia.

Parecer-me-ia uma medida de elementar bom senso; tal e qual deveria ter acontecido durante o tempo da intervenção da troika, quando o governo tinha outra cor. Nessas coisas de governos, ao contrário do que manda a lógica das seitas, cultivo ser daltónico.

Nos rendimentos, nos automóveis de função, nos cartões, a obrigação de quem lidera em tempos de crise é dar o exemplo, nos países como nas empresas. Essa seria, aliás, uma boa maneira de demonstrar, com factos, que o esforço deve ser de todos.

2. Gosto muito de apontar o caso da Suécia. O país não oferece luxo ou privilégios aos seus políticos. Os deputados vão de transportes públicos para o trabalho, vivem em apartamentos muito pequenos com lavandarias comunitárias. Nenhum deputado tem direito a pensão vitalícia, plano de saúde privado nem imunidade parlamentar.

A sociedade sueca, de uma forma geral, entende que os sistemas que concedem privilégios e regalias aos políticos são perigosos, uma vez que poderiam transformar esses homens e mulheres numa espécie de classe superior, que não saberia como vivem os cidadãos comuns e os afastaria dos problemas reais da comunidade. Grande princípio.

3. Esta semana chega-nos um outro bom exemplo, que ainda os há felizmente. No Vaticano, fustigado pela crise, o Papa Francisco decidiu que se cortem os salários mais elevados, ou seja, dos cardeais, de outros altos cargos da cúria, e em geral do pessoal religioso. O objetivo é simples: proteger os empregos da grande maioria das pessoas, pessoal laico, com salários de nível médio e baixo.

Segundo determinou o Papa, na quarta-feira, cardeais (cujos salários não são sequer do domínio público), bispos e outros elementos do topo perdem 10%. No escalão médio-alto o corte chega aos 8%. Sacerdotes e demais pessoal religioso, de ambos os sexos, contribui com 3%. Assim se equilibra o barco.

Desta forma, os restantes 6.000 empregados, laicos, da capital da religião católica podem continuar a receber os seus ordenados, mesmo que nos escalões mais baixos se tenham suspendido também as progressões automáticas. A economia tem regras gerais e neste caso os números são públicos: em 2019 as receitas foram de 307 milhões e agora, dois anos depois, vão cair para 213 milhões de euros (menos 30%).

4. Em Portugal sabemos o que manda a tradição. A crise é paga pela população e raramente atinge as empresas do regime e muito menos os elementos da governação ou do topo da administração pública. Na boa tradição do defender atacando, os partidos, auxiliados pelo pessoal que vive em volta e por vários idiotas úteis, alguns muito mediáticos, decretou há já alguns anos que qualquer movimento neste sentido seria, era, é, populismo.

Simplificando: tudo o que tenha a ver com subtrair mordomias aos titulares de cargos públicos é populismo – e, provavelmente, será ‘de direita’; por outro lado, adicionar sinecuras ao mesmo pessoal é, além de justo, sempre sinónimo de dignificar funções, e deve ser ‘de esquerda’. Não interessa que os políticos e gestores estejam cada vez mais longe do ganho médio de um português trabalhador normal, que não pobre (1.170 euros/mês, dados de 2018 da Pordata).

Se, descontando a condição económica e social, as pessoas podem desabafar nas redes sociais, cruzar-se na rua e falar livremente, até umas com as outras – bendita fraternidade! – a igualdade existe, a Democracia funciona. Está provado.