[weglot_switcher]

Livro: “A Vida Errante”

O texto de Guy de Maupassant é de uma beleza e sensibilidade extraordinárias, com uma linguagem poética, a fazer jus ao que descreve, mesmo quando confessa não ter palavras para o fazer.
10 Junho 2023, 11h14

 

O engenho humano e os avanços tecnológicos têm o condão de deixar muita gente à beira de um ataque de nervos – e nem estamos a referir-nos à agora tão propalada inteligência artificial.

Em 1887, Zé Fernandes visita Paris, onde não ia desde 1880, e reencontra o seu velho amigo Jacinto, morador no 202 da Avenida dos Campos Elísios, onde vive rodeado de uma imensa biblioteca, dos mais recentes inventos – telefone, teatrofone, grafofone, etc. – e com uma intensa agenda social diária – da visita ao Jardim das Plantas para ver a girafa, aos passeios pelo Parque Monceau ou as idas à Ópera.

Obrigado a servir uma ceia em sua casa, a um grão-duque “bárbaro, besuntado com literatura do século XVIII”, cujo prato principal será um peixe “delicioso e muito raro” pescado na Dalmácia pelo próprio grão-duque, Jacinto, homem culto e refinado, é, naturalmente, o anfitrião perfeito. Até que é traído pela tecnologia: o elevador dos pratos que trazia o peixe da copa encalhara, desarranjara-se, não se movia, ficando os comensais impedidos de saborear aquela delícia do Adriático.

Umas semanas depois, sofrendo de fartura de tanta civilização, no certeiro diagnóstico de Grilo, o criado que acompanha Jacinto desde a infância, este e Zé Fernandes partem de Paris com destino a Tormes. É nesta sua quinta no concelho de Baião que Jacinto vai reencontrar a felicidade e a alegria de viver.

Em 1889, apenas dois anos depois de ter lugar esta história criada por Eça de Queiroz, Paris organizou a Exposição Universal, com ela inaugurando um feito da tecnologia e da engenharia da época, o maior edifício do mundo: a Torre Eiffel.

“Deixei Paris e até a França devido ao tédio absoluto que a Torre Eiffel acabou por provocar em mim.” É assim que começa “A Vida Errante”, relato de viagem de Guy de Maupassant – à época um dos maiores e mais populares nomes das letras francesas– pela costa de Itália, Sicília e, por fim, Argélia e Tunísia.

Aos países do norte de África trata-se de um retorno, pois era grande a sua obsessão pelo sol (aliás, em francês, existe uma edição de bolso da Gallimard que contém mais relatos, “Au soleil suivi de La Vie errante et autres voyages”), que começara no Outono de 1880 quando, acompanhando a sua mãe enferma à Córsega, fica deslumbrado com o contraste violento das cores, os cheiros das ervas aromáticas, as montanhas avassaladoras. Ele, um homem do Norte, nascido na Normandia, região de dias nublados e clima mais agreste.

Filho de uma amiga de Flaubert, de quem se tornaria discípulo, e que terá influenciado a sua escrita, naturalmente, mas não no que respeita às viagens africanas, pois Flaubert só visita rapidamente a Síria e a Palestina para poder conferir veracidade às suas descrições em “Salammbô”, pelo que tons, luminosidade e povos não são comparáveis.

O texto de Maupassant é de uma beleza e sensibilidade extraordinárias, com uma linguagem poética, aliás, a fazer jus ao que descreve, mesmo quando confessa não ter palavras para o fazer, pelo que é com uma enorme satisfação que o vemos agora disponível em português, editado pela Tinta da China, com uma primorosa tradução, prefácio e notas do próprio coordenador da coleção, Carlos Vaz Marques.

Quanto à Torre Eiffel, que seria para desmontar no final da Exposição, lá continua e é, provavelmente, o maior ícone da capital francesa; já os Campos Elísios, há muito que os pássaros de Joe Dassin os abandonaram e lá deixaram de cantar canções de amor.

Eis a sugestão de leitura desta semana da livraria Palavra de Viajante.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.