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Livro: “Diário”, do polaco Witold Gombrowicz

Tinha 49 anos quando começou a escrever as primeiras linhas deste “Diário” inclassificável. Proibido pelo regime comunista na Polónia, circulou clandestinamente e só em 1989 foi publicado sem os cortes da censura. Eis o primeiro volume em português.
5 Março 2022, 11h03

Ontem ao fim da tarde, estive na praia frente ao casino [em Mar de Plata]: o marulho e o respingar do costume. Um peito de água negra a subir e a descer. O jacto de um leque de espuma farfalhante chegou aos meus pés. Acolá, para sul, o contorno de casas num monte; aqui, diante de mim, um mastro e um estandarte e, à esquerda, uma estaca quebrada que emerge e se afunda… Trovejou. Primavera. A temporada de praia só começará daí a dois meses.”

 

 

Buenos Aires, 1953. Witold Gombrowicz, polaco exilado cuja consagração era ainda uma miragem, tinha 49 anos quando começa a escrever as primeiras linhas deste “Diário” inclassificável, que só a sua morte interromperia, em 1969.

Hoje, é considerado um dos maiores nomes da literatura polaca e a sua influência é sentida para além das fronteiras do seu país. Por exemplo, o norueguês Karl Ove Knausgård – que ficou famoso pelos seis volumes da sua autobiografia “A Minha Luta”, espécie de exploração proustiana do passado –, afirmou que “O Diário de Gombrowicz influenciou profundamente as minhas noções de identidade e literatura”.

Convidado para a viagem inaugural da nova rota marítima entre a Polónia e a Argentina, Gombrowicz foi surpreendido na capital argentina pelo início da guerra, em 1939, cerca de uma semana depois de ter chegado. Prestes a regressar, abandona o transatlântico no último momento e não mais voltará ao seu país, pois à guerra sucede-se o período comunista.

Inspirado pelo “Diário” de André Gide, apesar de a sua fama ser nula, ao contrário da do escritor francês, escreve estas crónicas sobre uma miríade de temas. Destinadas aos leitores polacos da revista “Kultura” (editada em Paris, mas lida por cerca de três mil emigrantes espalhados pelo mundo), nelas “cada palavra é escrita contra a corrente” e revela-se pura dinamite que rebenta com estrondo ideias feitas.

Nada sai ileso: o efémero conforto das ideologias, a pequenez dos nacionalismos, o provincianismo literário, a arte politicamente comprometida e a humanidade em geral. No pano de fundo do exílio na Argentina, assomam a magia da pampa, lampejos do quotidiano, a par de vultos como Silvina Ocampo, Jorge Luis Borges e Virgilio Piñera, e traça-se o retrato de uma mente brilhante e insatisfeita, de um iconoclasta e subversor em busca de uma identidade.

Proibido pelo regime comunista na Polónia, “Diário” circulou clandestinamente e apenas em 1989 foi publicado sem os cortes da censura. Agora, o primeiro volume, correspondente aos anos entre 1953 e 1958, é finalmente publicado em português, pela Antígona, com tradução direta do polaco de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.

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