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Livro: “Regresso da URSS”

O tempo acabou por dar razão a André Gide, que neste relato de viagem não se coíbe de confrontar o leitor com questões éticas e morais, e de expor a crueldade da servidão na URSS.
27 Maio 2023, 11h26

Em 1790, quando foi publicado o livro da viagem do aristocrata russo Alexandre Radishtchev (1749-1802), “Viagem de São Petersburgo a Moscovo”, Catarina II, conhecida como Catarina, a Grande, sentiu-se ultrajada e o autor foi condenado à morte, sentença que seria mais tarde comutada em exílio na Sibéria. O livro, no entanto, continuaria proibido no país até ao final do século XIX.

Tendo estudado em Leipzig e lido os autores do Iluminismo, Radishtchev defendia os ideais de Rousseau, da liberdade e da justiça social. Contudo, a imperatriz russa, apesar de se corresponder com Voltaire e apoiar as ideias dos Enciclopedistas, muda o seu ponto de vista sobre possíveis alterações políticas, mais favoráveis ao povo, depois dos acontecimentos em França, em 1789.

Horrorizado com o que vê na sua viagem, ao longo do seu relato o autor confronta o leitor com questões éticas e morais, expondo a crueldade da servidão e de outras formas de exploração verdadeiramente institucionalizadas na sociedade russa do século XVIII, que continuarão pelos anos seguintes, e que serão uma das causas da Revolução de 1917 e da sua adesão pelos trabalhadores. De certa forma, Radishtchev é uma espécie de percursor de Alexandr Herzen e de Soljenítsin.

Em 1936, quando foi publicado o livro da viagem do escritor francês André Gide (1869-1951), “Regresso da URSS” e, no ano seguinte, “Apontamentos ao meu ‘Regresso da URSS’” – aqui compilados num único volume – ambos os livros causaram sensação entre os intelectuais franceses de esquerda e uma forte condenação do Partido Comunista Francês (PCF), que o acusa de estar ao serviço dos trotskistas e dos fascistas.

 

 

É tremenda a sua deceção com o comunismo, ideal político pelo qual começara a sentir uma simpatia crescente, razão pela qual fora convidado a visitar o imenso território. Se, no início da viagem, ainda se deixa maravilhar pelos desfiles na Praça Vermelha e pela qualidade intelectual dos elementos da “Komsomol”, a Juventude Comunista, em breve se começa a aperceber do conformismo, do medo permanente, dos artistas subservientes, do absurdo culto a Estaline, da repressão e da vigilância constante.

Gide foi alvo de inúmeros ataques, prática que se manteria por anos, ao ponto de, quando recebeu o Prémio Nobel da Literatura, em 1947, um membro do PCF ainda o apelidar de falsificador num artigo publicado no “Les Lettres françaises”. O tempo viria a dar-lhe razão, por muito que o atual presidente russo lamente o final da URSS e da sua hegemonia sobre parte considerável do mundo durante quase meio século.

Agora, a D. Quixote recupera um testemunho que se mantém capital, com apresentação de Paulo Tunhas e tradução de João van Zeller.

Eis a sugestão de leitura desta semana da livraria Palavra de Viajante.

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