Há milhares de livros escritos por estrangeiros sobre países onde decidem viver ou para onde são enviados em trabalho, como Itália, França ou Grécia. Mas, sobre Portugal a produção conta-se quase pelos dedos de uma mão; vá, duas para sermos mais otimistas e fazer jus ao trabalho de pesquisa de Maria Filomena Mónica em “O Olhar do Outro. Estrangeiros em Portugal: do Século XVIII ao século XX” (edição da Relógio d’Água).
E não é que não tenham por cá passado – Byron, por exemplo, referiu Sintra, onde pernoitou, em cartas, mas não em livro; o romeno Mircea Eliade deixou a sua estadia registada no diário; o húngaro Arthur Koestler, que se limita a incluir umas referências a Lisboa em dois dos seus livros de ficção; entre outros –, mas são poucos os que tratam de passar a escrito as suas vivências em Portugal. O que é tão mais lamentável quanto, se virmos bem, temos muitas razões para nos rirmos de nós próprios e, por vezes, é preciso vir alguém de fora para no-lo fazer notar.
Gerrit Komrij é um nome grande da literatura neerlandesa, tendo protagonizado diversas polémicas que ficaram. Nascido em março de 1944, em Winterswijk, fixa-se em Portugal em 1984, primeiro em Alvites e depois em Vila Pouca da Beira, no concelho de Oliveira do Hospital. É nesses anos que escreve “Atrás dos Montes” (publicado pela Asa em 1997), este “Um Almoço de Negócios em Sintra” – também da Asa e esgotado há anos, eis que surge de novo nas livrarias pelas mãos da Guerra & Paz, com tradução de Fernando Venâncio, linguista e autor de “Assim Nasceu uma Língua” – e ainda a antologia poética “Contrabando” (Assírio & Alvim, 2005). Em 1993, recebe o prémio P. C. Hooftprijs, o principal prémio literário dos Países Baixos, e, no ano 2000, é escolhido pelo público como Poeta da Nação. Morre a 5 de julho de 2012, em Amesterdão, mas é enterrado perto daquela que considerava, de facto, a sua casa, em Vila Pouca da Beira.
Como se pode depreender pelo título e pela frase usada pela editora para divulgar o livro – “Eu sou um apaixonado por Portugal, mas não um apaixonado cego” –, o registo é humorístico e a visão de Portugal e dos portugueses crítica q.b.
“Um Almoço de Negócios em Sintra” – no texto que dá título ao livro, o autor narra um almoço de três horas onde, afinal, não se fecha negócio nenhum – é um misto de conto, crónica e memória, e mostra-nos o olhar satírico, enternecedor e humano do autor, numa linguagem mordaz e irónica. Ficam uns excertos: “O relógio da aldeia bate onze vezes. É já, portanto, meio-dia e cinco”; “Uma conversa portuguesa consiste numa corrente vocabular irreprimível, durante a qual é de preceito as pessoas recurvarem-se uma para a outra em jeito de conjura e olharem-se profundamente nos olhos. A impressão é sempre de grande intimidade, mas as pessoas ficam-se cuidadosa e receosamente por superficialidades. Conversas, portanto, sobre os filhos, a família, as doenças deste e os maus-passos daquele. Nunca uma só confidência pessoal.” Ou ainda, sobre a burocracia lusa, “Certa vez em que, devido a uma cruzinha errada, fiquei a pertencer ao sexo feminino, custou-me dez formulários para repará-lo, quando uma simples olhadela, espero eu, teria bastado.”
Eis a sugestão de leitura desta semana da livraria Palavra de Viajante.
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