Vivemos uma época em que a actividade de fazer lugares, que deveria valer como actividade básica de uma vida com sentido, se torna apenas resistência contra a disposição generalizada para se rarefazerem os lugares existentes e dificultar o aparecimento de novos.

Indicadores desse rarefazer são a precariedade, que muito além do fim da estabilidade laboral designa um regime existencial de incerteza e inquietude; a aceleração social, que compele ao movimento perpétuo depreciando ficar num lugar; a indiferenciação dos lugares, cada vez menos singulares, apenas paragens que se fazem equivaler a outras, leve-nos aonde nos levar o turismo; e a virtualização dos lugares, com menos espessura, quando substituem os lugares capazes de receber a espessura dos nossos corpos.

Mas se esta hipótese de uma rarefacção dos lugares puder ser debatida sem que a arrumem a um canto com o epíteto de reaccionária, então, prosseguindo, com o dever do método (para que não nos dispensemos de algum esforço que o pensar também exige), sugiro que pensemos dois tipos de lugar, primordiais na nossa história. A casa e o mundo. Dos lugares e sua rarefacção e das casas já falámos. Resta o mundo para concluir este tríptico.

  1. A ideia de mundo

A palavra mundo abre um mundo de sentidos. Pode significar tudo e incluir tudo sem olhar a diferenças, como pode significar uma singularidade que se recorta de tudo o mais. Tanto dizemos “o mundo inteiro” como dizemos “cada pessoa é um mundo”.

Pode ser o universo, poder ser o planeta, pode ser a casa de cada um, pode ser o mundo que se descobre quando se abre a porta de casa e se sai. Pode ser o que há de comum e une e, então, falamos do mundo dos negócios, dos políticos, também dos poetas, dos artistas, dos afectos, da racionalidade económica. E pode ser o que nos singulariza – e falamos, então, de um criador imaginativo no seu mundo particular, de uma mente singular e, de novo, cada um no seu mundo. Não há forma de levar uma vida com sentido sem um mundo seu.

O mundo inteiro é um, mas é também a multidão de singularidades de que somos sujeitos, a comunicarem, por vezes fundindo-se, transformando-se em mundos partilhados. O meu mundo e o do outro, tão diferentes ou parecidos, a atraírem-se ou não, a fazerem parte um do outro, ou nem por isso. Não se é sem mundo e, dificilmente, sem ser parte do mundo de outrem. De estar só também se diz estar longe do mundo e no Brasil “todo o mundo” quer dizer as pessoas todas.

O mundo é a colecção integral de todos os lugares e cada um dos seus lugares pode ser também um mundo. Por isso, mundo e lugar podem coincidir, mas não significam exactamente o mesmo. Na verdade, mundos são lugares, se os entendermos como incluindo tudo o que é significativo para um sujeito — seja esse sujeito uma, muitas, ou todas as pessoas. Sorrimos ao ver a criança perdida no seu mundo porque é ela a fazer lugar daquilo que lhe importa, aí se ocupando. Perde-se dentro do seu mundo, mas longe de estar perdida.

O que define mundo é essa perspectiva sobre os lugares preenchidos por dentro. Ter mundo é conduzir a sua existência e poder ser sujeito de sentido. E, por isso, quando morre alguém não acontece apenas o mundo perder alguém, mas, como dizia Derrida, em certo sentido acontece um fim do mundo, do mundo singular daquela pessoa. Sempre que nos morre alguém morre-nos um mundo. E sempre que nos nasce alguém nasce um novo mundo.

Mas o mundo também tem de ser pensado como o lado de fora além dos nossos corpos próprios e das nossas casas, mundo exterior. O mundo começa quando saímos à rua e encontramos o que não é de cada um, mas comum. De certo modo, por simpática que seja, a expressão ‘Casa comum’ não é boa. Porque as casas são o lugar do privado, da intimidade, e o mundo é o lugar do público. E por isso são lugares primordiais, talvez os mais primordiais da história humana, pelo menos da ocidental: recortam a diferença do privado e do público.

Percebe-se e acompanha-se a intenção ecológica da Encíclica Laudato Si – sobre o cuidado da casa comum, trazendo o planeta para o nosso cuidado comum e pensando-nos na mesma comunidade planetária. Apesar de todas estas boas razões, importa pensar o planeta mais como mundo do que como casa. É preciso conciliar os comunitarismos, casas comuns particulares, não a uma grande casa, mas ao ideal cosmopolita em que todas dão para uma grande e aberta rua. Ser cidadão do mundo (é esse o significado do grego kosmopolitēs) não pode significar confinar-se a uma casa. E não faz sentido olharmos para nós mesmos como cidadãos das nossas casas.

O mundo guarda um sentido de dentro, mas em que estamos com mais do que nós próprios. O mundo é como uma dança com as coisas e com os outros que os traz para dentro. Mundo exterior é a primeira realidade inclusiva, a separar o cosmos do caos. Vir ao mundo é o primeiro acontecimento inclusivo. Temos sempre um pé fora, como se dançássemos com o mundo, cada um à sua maneira.

Mas um lado de fora de tudo não é um lugar. É como deixar o mundo. Como a imaginação de um sobrevivente solitário numa nave perdida no espaço e no tempo intergalácticos, incomensuravelmente longe de tudo, sem resposta para a pergunta “está aí alguém?”. Aí a própria ideia de lugar torna-se um contra-senso. É como morrer em vida.

  1. Amor mundi

Surpreendentemente, tudo isto que se divaga do mundo tem muito que ver com política. No seu conjunto de ensaios “Entre o Passado e o Futuro”, Hannah Arendt escrevia “na política o que está em jogo não é a vida mas o mundo”. Fazer esta separação entre a vida e o mundo e perceber o salto de desprendimento e de coragem que implica é ir ao encontro do que se deve esperar da política. Mas pensar e agir politicamente torna-se raro quando prevalece, desproporcionada, a auto-referência à vida, ao interesse próprio, o individualismo, da vida de cada um como único fim, e a de todos os outros como meios.

Também não se trata de deslocar o amor da vida para o mundo, no sentido de uma união que funde num furor sem distâncias a parte que ama à parte amada.  Não se trata de amar o mundo como uma paixão. Noutra obra,A Condição Humana”, Hannah Arendt di-lo assim: “o respeito, de maneira próxima à da philia politiqué aristotélica, é um tipo de «amizade» sem intimidade e sem proximidade; é uma consideração pela pessoa à distância que o espaço do mundo coloca entre nós”.

Faz-nos falta essa distância sobre nós mesmos e o mundo é esse lugar de não coincidência, esse espaço que habitamos com esperanças e sentido sem que seja nosso, seja a rua, a assembleia (física ou virtual), o jardim público, o mar todo diante de nós, ou o espaço além da Terra. Mas é ainda amor por não pedir contrapartida.

Muito recentemente, mas ainda antes da pandemia, uma estudiosa de Arendt, Samantha Rose Hill, escrevia: “Amor Mundi – amor do mundo – não é amor em nenhum sentido a que estejamos acostumados (…). A concepção de Arendt tem mais que ver com compreensão e pensamento crítico do que com sentimento ou afecto.” A política dos amigos é um enorme, mas frequente, enviesamento da amizade política, que muitos provamos amargamente ao longo da vida cívica.

  1. Fazer mundo

Quando Yuri Gagarin cumpriu a primeira órbita sobre a Terra a bordo da Vostok 1, fará 60 anos daqui a um mês, pela primeira vez olhos humanos viram a Terra. “Através da janela, vejo a Terra. O chão é claramente discernível”, ouvimo-lo dizer num registo áudio. E assim permaneceu neste novo lugar movente, a orbitar, 108 minutos, antes de regressar. Uma frase de Gagarin ficou para a história – “Circundando a Terra na minha nave espacial orbital, maravilhei-me com a beleza do nosso planeta. Povos do mundo, salvaguardemos e valorizemos esta beleza – não a destruamos!”

A rarefacção do mundo talvez tenha começado logo quando se confinou o planeta à ideia de um globo, uma estrutura geométrica que o encerra, como que a dizer: o mundo tem de ser dominado. Lembro aquele “Misantropo” de Brueghel o velho, que pintou um dissimulado escroque dentro de um globo a roubar um circunspecto homem, e que trazia por inscrição “Porque o mundo é pérfido, eu enluto-me”. Mais feliz é a língua francesa ao falar de ‘mundialização’ em vez de ‘globalização’. Um globo é uma totalidade fechada, com perímetro; um mundo é uma totalidade aberta, um cosmos. Muito mais do que casa, e certamente mais do que o quarto apertado que é um globo, o planeta Terra precisa ser vivido como mundo.

Mas não é só ao planeta que falta mundo. Nas nossas sociedades contemporâneas, é preciso articular de novo a experiência de mundo. Em toda a sua polissemia, o mundo que tudo inclui e o mundo singular de cada um, visões de mundo, esperanças de sentido que se habitam, mas com um pé dentro e outro fora, mundo como espaço de amizade cívica, plural, de pensamento e discussão crítica.

Faz falta mundo às acusações conceptuais desejosas de entrincheiramento, mesmo sem trabalho conceptual feito, aos fundamentalismos e aos relativismos, na verdade igualmente indisponíveis a debater a relatividade da posição própria, aos comunitarismos fechados e aos individualismos sem sentido de comunidade (outro fechamento), aos nacionalismos que reivindicam “esta é a minha terra” como a “minha casa” em vez de a rua que é também minha precisamente por não ser minha.

Pensar e agir em favor de mais capacidade para fazer lugares, lugares de mundo e lugares de casa, é uma boa maneira de sintetizar o programa de um cosmopolitismo de proximidade, para o planeta e para nós que o habitamos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.