Assinalaram-se ontem os 20 anos da transição da administração de Macau para a China. Estes números redondos proporcionaram uma série de eventos que evocam a data e reforçam a perspetiva harmoniosa em que o processo decorreu. Realizaram-se inúmeros documentários, a par de reportagens e notícias sobre este tema. Contudo, o foco está em olhar o passado, ou seja, em falar de Macau durante estes vinte anos. Fica por questionar, como será Macau nas próximas três décadas que nos separam do regime transitório. E, aqui, já se nota o grande desconhecimento relativamente ao que significa a transição de Macau para mãos chinesas.

O então território sob administração portuguesa, Macau, passou para administração chinesa em 19 de dezembro de 1999. Findas as negociações, a China comprometia-se a respeitar o princípio “um país, dois sistemas” e Macau retornaria à administração chinesa com o título de Região Administrativa Especial de Macau. A transição até integração total da China duraria cinco décadas, durante as quais seriam mantidas duas línguas oficiais, assegurando assim a permanência da língua e herança portuguesas durante esse período de tempo. A legislação também seria mantida, incluindo aspetos como a liberdade de imprensa e a garantia dos direitos civis.

O documento assinado mantém a sua vigência e dá o direito de reclamação em caso do seu não respeito para os organismos legais internacionais. Significa isto que o processo de transição está longe de ter terminado e que Portugal, ainda que assegurando a não ingerência nos assuntos internos da China, deverá manter a sua ligação histórica ao território.

O processo de retirada da administração portuguesa de Macau não tem paralelo na história imperial portuguesa. Aliás, Macau sempre se distanciou bastante da restante realidade colonial portuguesa, pela sua especificidade e pela dependência que sempre manteve relativamente à China. Trata-se do único caso negociado em que houve um período de transição que colocou fim à administração portuguesa. Essa transição foi dada como garantia da manutenção da presença da herança portuguesa que vai para além de aspetos formais e patrimoniais, moldando, por exemplo, o direito local.

É, por isso, estranho o desconhecimento que os portugueses têm em geral sobre este território. É também confrangedor o facto de Portugal manter um discurso político baseado no passado, mas em que não perpassa nenhuma visão integrada relativamente à China e que se possa aplicar no presente e no futuro. As instituições públicas ou privadas que derivaram dessa presença portuguesa em Macau também persistem num olhar para o passado, no qual a contemporaneidade aparece como algo distante e até desinteressante. Assim, os cursos de história da presença portuguesa em Macau enchem-se e são inexistentes os que poderiam abordar Macau contemporâneo.

Curiosamente, Portugal e a China, que em conjunto negociaram a transição de soberania em Macau, olharam para o território sob perspetivas diferentes. Portugal focou-se no passado e num discurso de aproximação com base no legado histórico e nas seculares relações entre os dois países. A China usou o passado como discurso de convergência e procurou ativar em Macau uma plataforma com entendimento com todos os países de língua portuguesa.

Macau hoje

Em vez de nos perguntarmos sobre o que resta de Portugal em Macau, seria bom questionarmos o que é este território hoje. É a meca do jogo e dos casinos? É apenas um espaço classificado patrimonialmente pela UNESCO? É um exemplo de convergência pacífica entre o Ocidente e o Oriente? É a terra de identidade dos macaenses? É um território de contrastes e harmonizações complexas? A tudo isto poderia responder que sim.

Os casinos mudaram para sempre a paisagem de Macau, sobretudo, a partir do momento em que cresceram em quantidade e qualidade, superando o volume de lucro obtido pela mesma atividade em Las Vegas. O centro histórico é visitado diariamente por milhares de turistas, maioritariamente chineses continentais, o que testemunha o modo como se valorizou o património histórico e o seu reconhecimento pela UNESCO.

Famoso pela sua cultura ora híbrida, ora mais chinesa, ora lembrando a sua herança portuguesa, também recebe muitos que querem explorar a sua culinária, o convívio entre a religião católica e as religiões tradicionais chinesas ou simplesmente deambular entre uma cidade que rapidamente passa de ocidental a oriental. Os macaenses são a face humana dessa hibridez criativa que gerou uma nova forma cultural e que, ao invés de se apagar, tem vindo a ganhar razões para resistir.

Quando visitamos os museus de Macau, há sempre essa intenção de mostrar a convergência de dois mundos num só, em que durante cinco séculos houve, de modos mais ou menos harmónicos, a partilha de um território. Mas a retórica histórica apenas interessa a Macau enquanto elemento de diferenciação, potenciador de mais turismo e da sua promoção enquanto paisagem única no mundo oriental.

Nas suas relações económicas ou políticas, o território não vive da sua ligação ancestral a Portugal e quando a cultiva é sempre com uma perspetiva pragmática. Daí que não seja de estranhar que o português raramente se oiça ou que o mais visível de Macau seja uma fusão entre a herança chinesa e o legado português na arquitetura, no urbanismo e nos comportamentos. E, talvez, seja este o elemento que mais choca quando alguns portugueses visitam Macau. Essa ausência de um Portugal distante, porque afinal Macau não é, nunca foi nem nunca pretendeu ser Portugal.

A única curiosidade é como se desprendendo da China, mesmo estando dependente desta, Macau conseguiu diferenciar-se, apesar da esmagadora presença da etnia chinesa. Mas não é isso que o visitante português procura. Em geral procura um passado glorioso e uma pequena reprodução da sua terra natal que aí não encontra. Talvez isso justifique a falta de interesse com que se olha Macau a partir de Portugal.

Contudo, para além de tudo isto, Macau é também um território que a China designou como plataforma de ligação entre si e os países de língua portuguesa e mesmo a América Latina. Acreditando na sua hibridez cultural e na proximidade face aos mundos lusófono e hispânico, com o objetivo de diversificar o potencial de Macau e de não encurralar o território no negócio do jogo, habilmente, a China desenhou uma nova missão para Macau. A região tornou-se num polo de atração de eventos internacionais, conectados à diplomacia cultural, científica e desportiva, sobretudo, direcionada para os países com os quais houve uma conexão histórica mais forte.

A criação de uma organização internacional dedicada aos países de língua portuguesa, o Fórum Macau, visando o estímulo das relações comerciais, não é surpresa. Fundada em 2003, esta organização tem alargado o seu espectro de atividades e concretizou um importante estímulo à cooperação entre a China e os países lusófonos. Com o secretariado em Macau, a organização conta com um secretário-geral designado pela China e três secretários adjuntos, um representando os países de língua portuguesa, um representando a República Popular da China e um outro representando a Região Administrativa Especial de Macau.

A China custeia o financiamento administrativo da organização que tendendo para um modelo de organização multilateral e intergovernamental, não o é na totalidade, por não existir paridade absoluta entre os seus membros. Contudo, nas decisões de mais alto nível do Fórum Macau, tomadas nas conferências interministeriais ou nas conferências de Chefes de Estado e do Governo é sempre publicado um documento consensual com o resultado desse encontro.

Apesar deste modelo poder beneficiar uma das partes, neste caso a China, na sua aproximação aos outros membros, a verdade é que este foi um passo determinante para manter a funcionalidade permanente da cooperação em diversas áreas entre a China e os países de língua portuguesa. A par desta instituição, a China levou ainda a cabo um trabalho de profunda valorização do legado colonial português, no sentido de revertê-lo positivamente para o presente e futuro do território. Usou-o para promover Macau enquanto destino turístico e também para diferenciá-lo e integrá-lo no novo projeto da Grande Baía do Delta. Sem nunca renegar a boa relação com Portugal e o argumento histórico, validou-os através de ações concretas que servem o seu projeto político.

O olhar português

Portugal olha pouco para Macau e não observa as mudanças que ali ocorrem. Coloca o acento tónico nas boas relações com a China e fixa no seu horizonte um passado de glória e contacto prolongado. Contudo, tem sido pouco ou nada evidente o que pretende fazer com esse legado. Não parece existir um projeto para o território, nem mesmo no presente, em que Portugal teve a oportunidade de eleger o Secretário Adjunto (ainda em exercício) pelos países de língua portuguesa, posição que é rotativa e levará oito anos até que retorne ao nosso país. Em nenhum setor da vida nacional foi designado um papel para Macau, neste período transitório, em que de alguma forma Portugal continua ligado ao território.

Curiosamente, nem parece existir interesse em promover o estudo científico sobre esta área. Num concurso recente à Fundação para a Ciência e Tecnologia, um projeto foi rejeitado, com a referência que a presença lusófona era diminuta no território, pelo que não seria determinante nem influenciaria diretamente a manutenção do debate democrático em Macau. Conhecendo o papel que Portugal ainda tem e o facto de a China ter atribuído esta missão de ligação aos países de língua portuguesa a esta região especial, este argumento não faz qualquer sentido. Todavia, exemplifica o que tem sido a alienação de Portugal face a este território que administrou.

Está na altura de Portugal enfrentar o presente e o futuro. Se quiser usar o argumento histórico, claro que poderá fazê-lo, mas convém que seja de forma consciente e pragmática. E também seria bom atualizar a imagem de Macau, sem superficialismos e sem colá-la a Hong Kong que, em tudo é diferente de Macau.

Acabo de ouvir que o presidente Xi Jinping premiou Macau com uma visita por esta região se ter “portado bem”, em contraponto a Hong Kong. Mas não será razão suficiente o presidente chinês visitar Macau porque existe um novo governo regional que coincide com os 20 anos da transição? Macau e Portugal lucrariam bastante com um olhar centrado na região e não apenas na envolvente. Caso contrário, Portugal estará a promover o que sempre tentou combater enquanto potência administradora de Macau: que o território se tornasse apenas um porto subsidiário e secundário de Hong Kong.