Quando a pandemia terminar, alguém devia escrever uma história das máscaras. Não apenas das regras de uso, mas também das máscaras propriamente ditas.

Primeiro não havia, nem sequer devíamos utilizar, por causa da celebérrima “falsa sensação de segurança”.

Médicos e enfermeiros, naturalmente, tinham de usar, para se protegerem. Mas isso de passar elásticos atrás das orelhas (e meter os narizes para dentro) não é para qualquer um. Importa ter o grau académico adequado.

Em matéria de decisões políticas baseadas na ciência não foi o começo mais auspicioso.

Felizmente que o sistema capitalista está em grande forma e o mercado – quer dizer, a China – passou a fabricar máscaras em grande abundância e a vendê-las ao mundo inteiro.

A quantidade aumentou, o preço caiu a pique e as regras mudaram.

Como não há fome que não dê em fartura, as máscaras passaram rapidamente de aconselhadas a obrigatórias. Primeiro no interior, na rua depois. Para os adultos primeiro, para as crianças mais tarde. Centenas de tutoriais, colocados no YouTube por especialistas em saúde desejosos dos seus cinco minutos de fama, ajudaram o povo ignaro a afixar as máscaras no sítio certo.

Nascidas irmãs gémeas das viseiras, as máscaras rapidamente esmagaram a concorrência. Como na evolução das espécies, sobreviveu aquela que tinha maior capacidade de adaptação. Pelo meio ainda surgiram umas espécies híbridas, material transparente como as viseiras, presas como as máscaras, mas com um emaranhado de elásticos. Irremediavelmente votadas ao fracasso, nem a funcionalidade “mostrar o sorriso” lhes valeu.

Entretanto, o capitalismo – sempre ele – lançou-nos a todos num campeonato de máscaras verdadeiramente desenfreado. Tão competitivo como a Champions League, não obstante a natureza deprimente do objeto.

As cirúrgicas, as sociais, as FFP2, as KN95, as descartáveis, as reutilizáveis, as que matavam o vírus, as XPTO e o diabo a sete. Toda uma nova taxonomia, apenas acessível a especialistas. Tornou-se difícil escolher uma máscara, tal era a diversidade de graus de filtragem, de funcionalidades e até de possibilidades de utilização combinada.

Bastante mais linear foi a entrada triunfante das máscaras no mundo da moda – desde as lojas “do chinês” até à Hermès – e no ramo do merchandising, empresarial e oficial – desde a Tasquinha do Zé Manel à Presidência da República. E ainda dizem que a pandemia não trouxe também oportunidades. Não é preciso ser-se brilhante para saber que capitalismo é sinónimo de oportunidade.

Às cores, para combinar com a roupa, ou brancas e azuis, a combinar com coisa nenhuma, lisas ou com padrões, com ou sem mensagens, as máscaras também entraram pela política adentro. Como dizia a CNN, “se uma máscara diz muito sobre quem a usa, diz ainda mais sobre quem não a usa”.

Pela primeira vez na história, um pequeno pedacito de pano (ou de uma fibra qualquer) esteve no centro de inúmeras batalhas políticas, travadas por ativistas de todos os espectros, desde os mais ferozes libertários aos mais ingénuos comunitaristas. A questão da obrigatoriedade do seu uso fez ganhar e perder eleições. Desde que alguém se lembrou de cruzar uma foice e um martelo que um objeto não suscitava tantas paixões exacerbadas e não adquiria, do dia para a noite, uma tão forte carga simbólica.

Nos últimos tempos há máscaras em excesso. Os preços baixaram ainda mais e são claramente um problema ambiental.

Muitos estão saturados delas, mas outros tantos ganharam-lhes genuína afeição. Uns fazem desporto com elas na rua. Outros viajam de carro com elas na cara – mesmo quando, na generalidade dos casos, não roubaram o carro. Outros ainda dedicam-se a acariciá-las com a ponta dos dedos, puxando aqui, ajeitando acolá, num perpétuo movimento.

Mudaram-lhes o nome e chamam-lhes agora “máscaras respiratórias”. Para não haver cá confusões. Há as do teatro grego, as do carnaval de Veneza, as dos palhaços do circo, as dos ladrões de bancos, estilo “casa de papel”. E, como é evidente, as que utilizamos para respirar. São “respiradores”, no fundo, porque não se pode respirar sem elas!