Antes que se apresse a concluir que tresleu: não, o título deste texto não tem nenhuma gralha. Muito se tem falado neste país sobre as alegadas vantagens de acolher nómadas digitais. Menos atenção tem recebido outro fenómeno foneticamente próximo na sua designação, mas que é radicalmente diferente, e que aqui proponho tratar como o das “mónadas digitais”.
Com efeito, quem é o nómada digital, na sua versão romantizada? É o viajante que deambula sem poiso fixo e, onde quer que esteja, ligando-se à Internet e beneficiando das dinâmicas de trabalho remoto reforçadas pela pandemia, produz para onde quer que seja e usufrui onde quer que esteja.
Agora pensemos no caso de quem, também beneficiando da ligação digital e podendo aproveitar a miríade de potencialidades de conexão e expansão do seu conhecimento, vive paradoxalmente num estado de quase confinamento cognitivo. Lê aquilo que lhe interessa e crê naquilo que quer, suspeitando da informação que não confirme aquilo em que já acreditava. E se lhe tentarem mostrar algum equívoco ou absurdo, provavelmente recusa-se a ceder. Afinal, os outros devem ter algum motivo escondido. Eis o mundo estanque das mónadas digitais.
Mónadas? De Leibniz ao digital
Mas o que é, afinal, uma mónada? O conceito tem uma história antiga que provavelmente remonta até Pitágoras, passando por Giordano Bruno, mas ficou marcado na história da Filosofia com a publicação da “Monadologia” de Leibniz em 1714. No sistema metafísico leibniziano, um dos expoentes do racionalismo alemão da época, as mónadas aparecem como os elementos simples, os átomos da natureza (§2).
Não eram, no entanto, elementos materiais, físicos, mas imateriais – metafísicos. Estes elementos eram dotados de perceção e apetites e, na verdade, eram imutáveis. Diferentes entre si, cada mónada era caracterizada como tendo a sua perspetiva sobre o universo (§57). Detalhes à parte, o ponto a sublinhar aqui é o do isolamento das mónadas que, como sublinhava Leibniz não sem uma ponta de humor, “não têm janelas pelas quais alguma coisa possa entrar ou sair” (§7, p. 40). A questão sobre se as “mónadas” podem ou não comunicar tem sido objeto de debate na história da filosofia; aí se joga, noutros termos, o problema da relação entre diferentes mentes e a possibilidade de se alterarem estados mentais como consequência da interação.
Pulando muitas etapas (Husserl, Deleuze) da discussão filosófica em torno da mónada, pensemo-la no domínio digital. A tentativa não é inteiramente original, sendo a expressão “mónadas digitais” usada por Lukas Verburgt para descrever a forma como uma versão sociológica da monadologia, aquela que foi cunhada por Gabriel Tarde, é usada por Bruno Latour e seus coautores para descrever o tipo de experiência que temos quando navegamos bases de dados digitais, e para ultrapassar a dicotomia entre a explicação do comportamento dos indivíduos e das entidades coletivas: a mónada é sempre uma perspetiva sobre o todo.
O meu objetivo aqui, bastante mais modesto, é outro. Trata-se de recordar a forma como as interações sociais em contexto digital têm, paradoxalmente e ao contrário da esperança de racionalização e abertura do espaço público que despontou aquando do surgimento da Internet, reforçado um isolamento cognitivo e comportamental que tem algo de tribal.
Desinformação e bolhas digitais
Comecemos pela desinformação. Sabemos como as fake news são fonte de confusão e por vezes de manipulação das crenças e comportamentos alheios. O que acontece é que os efeitos delas, e de outros tipos de desinformação, tendem a ser amplificados por fenómenos como os das chamadas “bolhas epistémicas” nas quais apenas se confere credibilidade à informação partilhada pelo grupo social que adere às nossas crenças e que, no seu limite, por vezes assumem a forma mais extrema daquilo a que alguns autores, como Nguyen, chamam as “câmaras de eco”. Nestas últimas o problema deixa de ser o do mero acesso a informação correta ou o erro de interpretação que a informação falsa causa, e passa a ser o da exclusão ativa daqueles que pensem de forma diferente.
Ora, o que se passa é que os meios digitais, e nomeadamente as redes sociais, exponenciam estes fenómenos, tornando mais prováveis os enviesamentos cognitivos. Regina Rini, por exemplo, argumenta que as partilhas nas redes sociais reduzem a nossa vontade de pensar criticamente ou partilhar factos, efeito que é amplificado quando a nossa rede de seguidores partilha o nosso sistema de crenças (político, cultural, religioso, (pseudo-)científico), ou outro.
O facto de os algoritmos utilizados por redes sociais e motores de busca muitas vezes tenderem a agudizar este efeito, seguindo a mesma lógica amoral de um mercado que não julga preferências e apenas nos alimenta com aquilo de que já parecemos gostar, cria uma situação de circularidade da qual é difícil escapar.
A este propósito, e também das consequências destes processos para a tomada de decisão das pessoas, consultar-se-á com grande proveito a investigação liderada por Joana Gonçalves de Sá, e financiada pelo European Research Council, no projeto FARE. Contudo, as fake news são apenas a ponta do icebergue da desinformação, na medida em que sistemas de crenças muito mais elaborados, e estranhos, são por vezes comummente partilhados.
Crenças estranhas e polarização política
Tomemos o caso daquilo a que podemos chamar crenças estranhas. O que são elas? Obviamente só serão estranhas se apreciadas de fora, pelos não crentes. Mas definamo-las, de forma simples, como crenças que desafiam os nossos padrões de racionalidade e que tendem a ser bastante resistentes, porque de alguma forma imunes ao processo da crítica. Crenças que, no seu limite extremo, arriscam-se a parecer delirantes. Exemplos clássicos são as “teorias da conspiração”, mas também encontramos fenómenos do género no chamado “negacionismo da ciência”.
Estes são exemplos sobejamente conhecidos, mas não custa invocá-los uma vez mais para efeitos de ilustração. Há quem aparentemente acredite que a Covid-19 alastrava através do 5G (ou que as vacinas nos instalavam um chip para geolocalização). Temos também o caso dos terraplanistas, que curiosamente parecem fazer da busca das suas próprias evidências e racionalizações um elemento fulcral da sua teoria, ainda que com o insucesso que podemos imaginar. E se quisermos ir aos exemplos mais politizados, pense-se na teoria da conspiração QAnon, fortemente associada à extrema-direita nos EUA e ao trumpismo, e que acusa as “elites progressistas” de serem pedófilos satanistas que criaram uma cabala para dominar o mundo.
Subjacente a todos estes fenómenos está a polarização e a consequente dificuldade no diálogo entre campos opostos. Por que razão resistem as crenças estranhas? Por vezes, porque as interpretações delirantes são inverificáveis; e se não podem ser provadas, também será difícil desmenti-las.
Mais frequentemente, como argumenta Lee McIntyre em relação aos negacionistas da ciência, as razões prendem-se com motivos afetivos relacionados com a nossa identidade social. Para um terraplanista, acreditar que a terra é plana corresponde muitas vezes a uma crença fundamental através da qual ele se define, e pela qual muitas vezes se sente perseguido; abandoná-la significaria que uma parte importante da sua vida perderia o sentido. Assim, a lógica é parecida à de uma forte afiliação política ou religiosa.
Tal fenómeno de bolha encontra-se ainda, de forma menos exótica do que nos exemplos precedentes, mas muito significativa para as nossas democracias, na polarização política. Aqui, o problema não é que existam opções políticas diferenciadas que escapem ao centro; essas são sempre bem-vindas no quadro do pluralismo político, desde que democráticas e respeitadoras dos valores da Constituição. O problema é quando o processo de radicalização conduz à erosão da democracia e à quase impossibilidade do diálogo.
Nesse pano de fundo, a bolha leva à diabolização do outro ideológico; aí, recusa-se ouvir-se o outro porque ele de alguma forma simboliza o mal, a alteridade ameaçadora, e assim encontramos mais um subterfúgio para se negar a existência de qualquer solo comum, incluindo no que diz respeito ao acordo sobre uma base factual. Nesse caso, o argumentário rezará que tal conjunto de factos apresentado pela outra parte mais não será que um subterfúgio encontrado para justificar a perversão ideológica.
Muito haveria a dizer sobre as ilusões hermenêuticas e os processos de hostilidade que laboram em todos estes casos. Mas por ora voltemos às mónadas e ao problema do isolamento.
Abram-se as portas e as janelas
Aquilo que estou aqui a sugerir, desculpando-me de antemão pela liberdade criativa que sempre implica um uso menos ortodoxo dos conceitos, é que os indivíduos presos nestas bolhas digitais vivem um pouco como mónadas semi-isoladas. É claro que o isolamento nunca é total e, por isso, talvez houvesse aqui que falar, como fazem Husserl ou Ricœur, de “comunidades intermonádicas” nas quais se admite algum grau de intersubjetividade.
A questão é que as mónadas que vivem na bolha terão sempre um horizonte epistémico bastante restringido. Não terão tanto acesso a conhecimento quanto poderiam e deveriam. E, para além disso, se se recusarem a atribuir credibilidade aos outros por causa da rejeição de quem eles são ou daquilo em que acreditam, causar-lhes-ão dano, no sentido da injustiça epistémica que invoquei no meu texto anterior.
Husserl, não sem a ponta de humor acima assinalado em Leibniz, notava que em certo sentido as mónadas até têm portas e janelas. Não as têm no sentido em que na experiência de interação com os outros não temos diretamente acesso ao seu mundo interior; mas têm-nas porquanto é possível a experiência da empatia. Pois bem: empatia e diálogo, eis aquilo que nos falta neste momento. Abram-se, por conseguinte, as portas e as janelas e pode ser que as nossas sociedades respirem melhor.