A guerra na Ucrânia mostra não dar sinais de abrandamento, enquanto o regime de Putin continua o seu bombardeamento indiscriminado, transformando a Ucrânia num campo de batalha que deseja subjugar a todo o custo. O conflito está demasiado próximo das fronteiras de países pertencentes à NATO e, neste momento, ainda não é possível prever a dimensão que a guerra irá atingir, mas uma coisa é certa: seja qual for o resultado, irá moldar uma nova ordem global.

Temos observado ou lido as histórias de sobrevivência do povo ucraniano contra o seu invasor, e o choque é geral pela crueldade de uma guerra que julgávamos que nunca mais voltaríamos a ver em continente europeu. As consequências não são menos trágicas: a falta de exportações russas e ucranianas de cereais e outros bens essenciais irão afetar muitos países, o custo de vida irá subir, a instabilidade social e económica irá contagiar quase tudo.

Se tínhamos esperança de que fossem os próprios russos a livrar-se do seu ditador, então temos andado iludidos. O povo russo está aprisionado na sua própria cela com um ex-oficial da KGB, muito à semelhança do protagonista de “1984”, Winston, que tem de lidar com a lavagem cerebral operada por O’Brien. A Rússia está diariamente a ser submetida a uma intensa operação de propaganda com retórica anti-ucraniana, em que os dissidentes são rapidamente silenciados. Os próprios russos tentam escapar do seu país aos milhares, a juntar aos milhões de ucranianos que fogem da violência.

Como foi possível que a dependência energética europeia da Rússia nos cegasse à lenta transformação do país numa cleptocracia ultracapitalista que há muito enterrou o comunismo? Não basta olhar para o que aconteceu na Crimeia em 2014. Há todo um percurso flagrante que já indiciava o que aí vinha.

Sabíamos da interferência da Rússia nas eleições americanas de 2016 com vista a fragilizar a democracia americana, sabíamos da guerra cibernética intensificada nos últimos anos, sabíamos que Putin estava a alimentar dezenas de grupos armados jiadistas no Cáucaso, Médio Oriente e outras regiões. Sabíamos do uso de armas químicas como Novichok em países da NATO para assassinar opositores de Putin. E em todas estas situações, a reação ocidental foi demasiado passiva.

Um dos mais famosos autores russos, Fiodor Dostoievski, foi condenado à morte em 1849 por atividades intelectuais subversivas antigovernamentais, mas foi poupado ao fuzilamento no último minuto e enviado para um campo de trabalhos forçados na Sibéria, onde passou quatro anos. Dessa experiência, que o mudou profundamente, nasceu a obra “Recordações da Casa dos Mortos”.

Cito: “A tirania é um hábito com a capacidade de se desenvolver até se transformar numa doença. […] A mente torna-se então capaz da crueldade mais intolerável, que passa a encarar como prazer; O homem e o cidadão são devorados pelo tirano; e o regresso à dignidade humana, contrição, ressurreição moral, torna-se quase impossível.”