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No reino das histórias

Catarina Alfaro, a coordenadora da Programação da Casa das Histórias, em Cascais, fala-nos do poder mágico e revelador das pinturas de Paula Rego a propósito da exposição que hoje inaugura: “Paula Rego: Histórias & Segredos”.
14 Abril 2017, 12h00

Sim, continuamos no reino das histórias. Ou melhor, histórias-pinturas, ou pinturas-histórias, nas quais Paula Rego pinta o que lhe vai dentro da cabeça.
A exposição que hoje inaugura na Casa das Histórias Paula Rego (CHPR), em Cascais, leva o nome do filme e “parte do registo íntimo e pessoal explorado no documentário do realizador britânico Nick Willing sobre Paula Rego, sua mãe”, explica Catarina Alfaro, Coordenadora da Programação da CHPR e curadora desta exposição em conjunto com o filho da pintora.

Foi a primeira vez que trabalhou com o Nick no desenvolvimento de uma exposição? Os dois assumem a curadoria.

Sim, geralmente discutimos as propostas que eu apresento de exposição, porque o Nick tem estado mais presente aqui no museu. Mas sou sempre eu que tenho essa autonomia. Quando é possível faço um plano da exposição e mostro à Paula, ela vê e lê atentamente os meus textos e até hoje ela nunca discordou das propostas.

Enquanto historiadora de arte já tinha uma relação com a obra da Paula?

Não tinha relação nenhuma, para além de ler os catálogos e de ver as entrevistas que ela dava.

Como construiu uma relação?

A partir do momento em que comecei a comissariar as exposições. Na altura, tal como hoje, falávamos sobre o que iam ser as exposições, fazíamos um plano 3D…

A primeira vez que esteve com ela, face a face, foi na montagem da exposição dedicada ao marido, o pintor Victor Willing.
Sim, foi nessa ocasião. Ou seja, conheci-a antes de comissariar uma exposição dela, mal eu entrei no museu. O meu primeiro contacto com a Paula foi muito pessoal. Não passou por este lado do ‘a Catarina está a trabalhar na minha obra, por isso tenho de manter alguma distância…’.

No catálogo recorda algumas frases que ela lhe disse na ocasião, como “Por amor faz-se tudo, não é?” Como reagiu?

Fiquei em silêncio. Uma pessoa fica desarmada… Sobretudo depois de ver a reação dela a olhar para as obras do Victor, que estavam a ser colocadas, e de perceber que ela estava a relacionar-se com a imortalidade da obra dele! Num museu que foi construído para ela e para ele. Acredito que, para ela, foi das sensações mais reconfortantes e mais intensas perceber que podia ver a obra do marido aqui e, como ela disse, “numa exposição tão bem montada.” Depois ficou a olhar para mim e acrescentou: São magníficas as suas pinturas, não acha? Parece que este museu foi feito para ter suas obras.”

Ou seja, conheceu a pessoa por detrás da ‘persona’, das máscaras…?

Sim. Como não estávamos a falar sobre ela, mas sim sobre o marido, a conversa fluiu muito rapidamente. E foi aí que também começámos a falar sobre questões que também são trazidas para esta exposição, como a relação dela com o Victor Willing. O museu tem uma sala com várias obras do marido e muitas delas são retratos da Paula, e, na altura, disse: “Eu até fiz de modelo dele”. E eu perguntei-lhe: “Isso era complicado? Sentia-se confortável?” E voltou a dizer-me “por amor nós fazemos tudo”. Ou seja, ela podia não estar muito confortável naquela situação, mas por ser ele, por ser um pintor que ela tanto admirava, como se pode ver no filme…

Como reagiu às revelações surpreendentes e tão íntimas da Paula?

Emocionei-me diversas vezes, sobretudo aquela parte em que ela tira a carta do peito… [silêncio] No fundo, este documentário reaproximou-me da visão que eu tinha da Paula, porque mostramos sempre os textos e biografias à família: aos filhos – à Cas [Caroline] e ao Nick Willing – e também à Paula. Há esta relação em que estão todos envolvidos, um trabalho de equipa… E agradeci ao Nick ter feito este filme, porque tem esse lado de ‘verdade’. Para além dos segredos, da crueza… porque os segredos que são segredos continuam escondidos, acho que não se revelam assim [a uma câmara]. Sobretudo, é um filme muito verdadeiro e tem esse lado, essa crueza. Por um lado, há coisas que a Paula diz que ela sabe que até podem ser chocantes para o filho, naquele contexto familiar. Mas, por outro lado, ela está a devolver, de algum modo, a verdade que durante muito tempo não existiu naquela relação. Os filhos dizem que tinham “uma relação mais próxima com o pai”. A mãe era uma espécie de estrela de cinema. Acho que, finalmente, a Paula retribui… e isso é muito bonito, muito autêntico. O filme chama-se “Histórias e Segredos”, mas acho que é mais sobre ‘uma verdade’ que poderia estar escondida nesse contexto familiar e que é, pela primeira vez, revelada.

Qual foi o maior desafio na construção desta exposição, visto que a ideia é fazer uma ‘ponte’ com o documentário?

O maior desafio foi trazer as obras que queríamos ter na exposição. Por várias razões: porque muitas estão em coleções particulares, porque o valor dos seguros é altíssimo, porque tivemos pouco tempo para pensar… Normalmente, preparamos uma exposição com mais de um ano de antecedência e aqui houve muito pouco tempo. E também passou por perceber que o documentário é uma coisa e a exposição tem de ser outra, apesar de se complementarem.

A exposição não é cronológica, nem poderia ser.

O que nós tentámos, sobretudo, foi reconstituir o discurso da artista, aquele que vemos no documentário. E utilizamos muitas frases da própria Paula a descrever o contexto em que essas obras foram feitas – e que vão ficar junto das obras ou dos núcleos – porque o que pretendemos, precisamente, é introduzir o discurso da artista e não dos comissários, dos historiadores… Tanto num caso como noutro, é a Paula a falar sobre a sua própria obra. Ou seja, a exposição é biográfica, mas não é retrospetiva, porque há temas que a Paula vai explorando durante toda a sua vida, são transversais. Ela acaba por analisá-los de várias maneiras e de voltar a eles, por isso é que [a série] “Depressão” é surpreendente.

Qual foi a reação da Catarina quando soube da existência desses desenhos?

Eu fiquei… “aaaaahhhhh” Fiquei muito emocionada… O Nick ligou-me e disse: “Catarina, nem imagina o que eu encontrei. Podemos fazer uma exposição só com estas obras!” Bem, então, tire fotografias, tenho de ver. “São incríveis e estavam escondidas! A mãe esteve muito tempo deprimida e achou que era uma maneira de ‘sair’ [dela]”. Ou seja, de encará-la de frente para depois de a esconder. Nestas obras não há cenários construídos, como acontece habitualmente, e tudo se resume à força da expressão do sofrimento. Mas, na “Depressão”, a força da Paula reside sobretudo no facto de ter depositado nestas imagens a esperança para encontrar o caminho de saída.

A exposição desenvolve-se ao longo das oito salas do museu e reúne, além de pinturas da artista, cartas, objetos pessoais, livros da sua infância, fotografias e documentos fílmicos. Memórias que nos contam histórias e que nos ajudam a entrever o mundo de fantasia e encantamento de Paula Rego, no qual o seu estúdio, recriado para a exposição, desempenha um papel fundamental. Victor Willing chamava-lhe “teatro da memória” e Catarina Alfaro reforça: é aí que vai “colocando nas suas pinturas aquilo que não é capaz de dizer, conferindo-lhes, assim, um poder mágico e revelador”.

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