O ano da coroação

A monarquia britânica, despida há muito de poder político efectivo, representa um importante instrumento de ‘soft power’, para usar uma expressão muito em voga, quer externa, quer internamente.

Independentemente das surpresas que 2023 possa trazer, um dos acontecimentos que marcará presente o ano será a coroação de Carlos III do Reino Unido. Sete décadas após a coroação de Isabel II, o quase eterno príncipe de Gales repetirá no próximo mês de Maio os rituais executados por sua mãe em 1953, a qual, por sua vez, então repetira os rituais executados por seu pai, dezasseis anos antes.

Uma coroação é um acto eminentemente cerimonial, mas a relevância dos eventos simbólicos na vida dos povos e dos Estados não deve ser desvalorizada, mesmo que o pragmatismo e o utilitarismo que dominam a nossa forma de ver o mundo dificultem esta constatação; a pompa e a espectacularidade de que os britânicos rodearam a sua monarquia, embora pareçam, nesta perspectiva, absurdos e dispendiosos anacronismos, representam a continuidade histórica e a unidade de uma nação.

A repetição dos gestos e das palavras por sucessivas gerações de soberanos são o acto teatralizado que as simboliza, acto que ganha tanta mais intensidade quanto mais esplendorosa for a encenação.

A aludida incompreensão quanto à razão de ser desta cerimónia parece ter influenciado o novo monarca que, segundo noticia a imprensa britânica, pretende para si uma coroação mais modesta e simplificada do que a anterior, talvez procurando evitar críticas de despesismo, sobretudo quando o Reino Unido atravessa uma severa crise económica.

Porém, tal ponto de vista revela-se falho de razão. Desde logo porque os rendimentos gerados pela coroação superarão as despesas: gente de todo o planeta afluirá a Londres, hospedando-se nos hotéis da cidade e frequentando os seus restaurantes; milhões de objectos alusivos ao evento serão comercializados – dos mais requintados aos de gosto mais duvidoso -, gerando milhões de libras. Numa perspectiva estritamente económica a coroação será, portanto, amplamente vantajosa.

Mas a pertinência de uma grandiosa coroação não se limita aos estreitos argumentos do dinheiro. A monarquia britânica, despida há muito de poder político efectivo, representa um importante instrumento de soft power – para usar uma expressão muito em voga –, quer externa, quer internamente.

A família real é um poderoso instrumento da política externa britânica. Os seus membros são embaixadores itinerantes, viajando frequentemente em representação do país, e também anfitriões dos chefes de Estado de todo o mundo, recebidos com uma deliberada formalidade, destinada a impressionar os convidados, que faz das visitas à corte de St. James um momento alto do mandato de qualquer chefe de Estado. A coroação, que seguramente contará com a presença de muitas dezenas de reis e presidentes, será, assim, um momento único de afirmação do Reino Unido perante o mundo que se reunirá na capital do reino nesse dia.

Internamente, a coroação acentuará o sentimento de comunidade, necessário num momento de dificuldades, até porque o evento não se circunscreverá ao aparato de Westminster, sendo também pretexto para múltiplas festividades de rua por todo o reino. Simultaneamente, servirá para reforçar a unidade nacional, elemento tanto mais relevante no momento presente, em que o separatismo escocês está na ordem do dia e na Irlanda do Norte ganha força a possibilidade de integração na República da Irlanda.

A questão dos custos da cerimónia é, portanto, de somenos importância. Por ocasião da coroação de Isabel II, Churchill, então primeiro-ministro, percebeu isso. Embora o Reino Unido vivesse ainda as sequelas da destruição causada pela guerra e os rigores dos racionamentos, o Governo despendeu no evento o dobro do montante gasto na coroação de Jorge VI, decisão que se revelou acertada, pois o entusiasmo popular e o impacte mundial da coroação ofuscaram as minudências orçamentais, apesar de os custos terem ascendido a 912 mil libras, o equivalente a mais de 32 milhões de libras em valores actuais.

Como referiu o notável político, o dia da coroação foi o dia “which the oldest are proud to have lived to see and the youngest will remember all their lives”. Em suma, o valor dos símbolos não se mede em libras.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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