Não tenho absolutamente nada contra Cristina Ferreira. Tomo bem nota das pessoas de quem não gosto; quanto a Cristina Ferreira, se nos cruzarmos na rua, não saberei quem é. Diz-se que ganha fortunas, que se compara à realeza e outras fofocas; enquanto for paga com o dinheiro de empresas privadas, nada contra, apesar de me chocar a pornografia salarial num país com os ordenados portugueses. Em suma, Cristina Ferreira é uma entertainer da televisão generalista, competente na captação de audiências e muitíssimo bem paga por isso mesmo; nada contra.

A dada altura, o país parou com um telefonema do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa para a Cristina, em pleno directo. Confesso que precisei de algum tempo para assimilar porque não compreendia o porquê daquilo tudo.

Primeiro, senti uma abstracta compaixão, imaginei Cristina com uma doença terminal ou vítima de algum dos males da actualidade. O Presidente habituou-nos a confortar toda a sorte de vítimas e, francamente, não me parece mal. Depois, compreendi finalmente que Cristina foi brindada com um tête-a-tête telefónico do Presidente, que lhe desejava, em directo no seu programa, sucesso na nova etapa multimilionária.

Terá sido uma reinterpretação republicana e improvisada do britânico “By apointment of His Majesty…”. Continuo até hoje à procura de uma razão menos evidente, para não chamar frívolo ao Presidente que teve o meu voto.

Depois de Marcelo Rebelo de Sousa, logo os afadigados do aparecer a qualquer custo se puseram a caminho. Assunção Cristas foi a primeira. Levou a família, que expõe sem critério a cada oportunidade na imprensa cor-de-rosa, esteve perfeitamente ao nível das trivialidades de um programa como este e cozinhou arroz com atum, prato próprio, imagina Assunção, para os milhares de espectadores que não ganham numa vida o salário de um mês da Cristina.

Eu, institucionalista retrógrado, que não consegue separar a instituição da presidente, quando se trata da intervenção pública, senti-me desconfortável, para dizer o mínimo.

Depois de Marcelo e de Cristas, Marques Mendes não poderia faltar. O oráculo das evidências ter-se-á agigantado e apinocado para a validação de Cristina. Não vi, não quero ver, nem imaginar, independentemente da evolução da cor das peúgas de Mendes, pouco, muito pouco, mudou.

A esquerda que se tem em grande conta, e se arroga o bom pensamento, gozou à farta com Marcelo, com Cristas e com Mendes. Desta vez, coisa rara, até tinha razão. Tinha, até descobrirmos o embevecimento burguês, popularucho e oportunista de Marisa Matias. Onde? Na Cristina, pois claro! Se faltava uma prova do aburguesamento do Bloco, ela aí está. Vale, de facto, tudo por mais um voto.

Dá quase para imaginar uma chamada da assessoria de imprensa do Bloco para a Cristina a tentar vender a Catarina: “Ah, ok, já preencheram a quota de políticos abaixo de metro e meio… Pronto, mandamos a Marisa. Serve? Senão, ainda temos um Conselheiro de Estado e Administrador do Banco de Portugal em carteira…”.

Por fim, com o circo estabelecido na aldeia, não podia faltar Costa. Lá irá em breve. Bem-disposto nestas coisas, trauliteiro como o vaudeville requer, Costa não desiludirá dentro do género.

Saberá dizer as larachas no momento certo, continuará a mentir como só Costa sabe, entreterá o público de Cristina e cozinhará esparguete com salsichas se entender que rende um voto. Quem faz o que Costa fez para se agarrar ao poder, fará seguramente o circo que entender necessário para cair nas boas graças de Cristina e do seu público. O pino, se preciso for!

Humor e crítica de detalhe à parte, assim se faz o retrato actual do país. Um país em que os seus protagonistas trocaram levianamente a responsabilidade e o estatuto institucional que incorporam por dez minutos de fama fácil. De modo triste, nenhum daqueles para quem voltamos o olhar e a esperança num futuro melhor, sabe estar à altura da postura pública que tal missão implica.

Simpatias partidárias à parte, não conseguimos imaginar Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa ou Álvaro Cunhal em tais bambuchadas, e há uma razão muito boa para isso: todos se comportavam como gente de Estado, as suas vidas privadas eram privadas, o que tinham para oferecer ao país eram diferentes projectos políticos, ideias e não receitas culinárias e outras frivolidades. Cada coisa tinha o seu sítio.

Termino como comecei. Nada tenho contra Cristina. Faz o seu trabalho, segundo parece, de modo muito competente. Não terá sequer responsabilidades por ter concentrado em si, de uma só vez, a nova interpretação do Fátima, Futebol e Fado de Salazar. Cristina está lá, e trata da sua vida, da vida de quem lhe paga, com afinco; só lá vai quem quer, só se expõe quem quer, só vulgariza as instituições que deveria tentar prestigiar quem quer. Pena que não termine o desfile na quarta-feira de cinzas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.