Se é ótimo confirmar de novo que até a Justiça não escapa à investigação do Ministério Público, é terrível constatar, como no caso envolvendo o juiz desembargador Luís Vaz das Neves, a possibilidade dos tribunais poderem ser um lugar de negócio, nos quais os sorteios para atribuição dos processos podem ser manipulados e onde trabalham pessoas capazes de serem os primeiros a borrifar-se para as incompatibilidades inerentes ao seu estatuto.

Como se vê, as suspeitas de corrupção em Portugal agregam uma comunidade heterogénea e complementar, bem definida no processo da Operação Lex, nascido de uma certidão extraída de outro processo, a Operação Rota do Atlântico, que envolve o antigo empresário de futebol José Veiga, entretanto conquistado pelos negócios em África.

No Lex há três juízes (Rui Rangel, Fátima Galante e, agora, Luís Vaz das Neves, ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, entretanto jubilado) sob suspeita, cada um com responsabilidades diferentes na investigação que visa determinar se será verdade ou não que um clube e o seu presidente, neste caso o Benfica e Luís Filipe Vieira, terão tido acesso privilegiado ao interior do sistema de justiça.

Estamos perante um ‘cocktail’ explosivo do qual saem diversas notícias.

Por exemplo, sabemos que a lei não o permite mas Luís Vaz das Neves terá conseguido rendimentos de uma empresa ligada à arbitragem extrajudicial de conflitos, criada em maio de 2018 e nesse ano com uma faturação de 190 mil euros. Essa mesma empresa utilizou o salão nobre do edifício da Relação de Lisboa, gentilmente cedido de forma gratuita pelo sucessor de Vaz das Neves, para um julgamento privado e assim deliberar sobre um caso que foi solucionado por acordo extrajudicial. Com esse serviço, o juiz, que está indiciado por corrupção e abuso de poder na Operação Lex, terá ganho, no ano seguinte, outros 280 mil euros em honorários.

E constatamos, também, que o sorteio de distribuição de processos pelos juízes, feito através de um programa informático desde maio de 2014, tem tantas exclusões possíveis (determinadas por férias, “muito trabalho” e outras oportunas razões) que poderá, afinal, ser dirigido quase tão precisamente como um drone em direção ao destino. É a confirmação de suspeitas antigas que já pairaram sobre outro caso: o da Operação Marquês, envolvendo José Sócrates e o seu fiel grupo de impagáveis amigos. Não nos esqueçamos de que Rui Rangel foi sorteado duas vezes para recursos de Sócrates, motivando a intervenção da Procuradoria-Geral da República no segundo desses casos.

Estamos aqui. A Justiça encontra-se sob suspeita. Tem bolsas de uma infatigável irmandade onde tudo se pode pedir em troca. A ligeireza, pelos vistos (e pelas escutas), é a mesma com que qualquer português, desses mais escandalizados com a corrupção, pede um ‘favorzinho’ ou mete uma ‘cunhazita’. O diminutivo faz toda a diferença, como a de nos excluir automaticamente do bando de traidores que desgraça o país.

Não venha depressa um combate sério a este flagelo, agora prometido pelo governo PS, mais astuto que a oposição cansada, e continuaremos a viver numa sociedade doente, na qual as incompatibilidades não são vigiadas, a investigação carece de meios e a pouca-vergonha campeia como se fosse uma inevitabilidade histórica.

Estudos recentes dizem-nos que a corrupção tem um impacto na economia portuguesa de 18 mil milhões de euros, mais de duas vezes o custo anual do SNS. Mas essas contas parecem não importar. Infelizmente, nem a alguns juízes.